domingo, 29 de junho de 2008

CAOS

Um conjunto de objetos estudados que se inter-relacionem é chamado de sistema. Entre os sistemas consideram-se duas categorias: lineares e não-lineares, que divergem entre si na sua relação de causa e efeito. Na primeira a resposta a um distúrbio é diretamente proporcional à intensidade deste. Já na segunda a resposta não é necessariamente proporcional à intensidade do distúrbio, e é esta a categoria de sistemas que serve de objeto à teoria do caos, mais conhecidos como sistemas dinâmicos não-lineares.
Esta teoria estuda o
comportamento aleatório e imprevisível dos sistemas, mostrando uma faceta onde podem ocorrer irregularidades na uniformidade da natureza como um todo. Isto ocorre a partir de pequenas alterações que aparentemente nada têm a ver com o evento futuro, alterando toda uma previsão física dita precisa.

domingo, 22 de junho de 2008

(...)

Tratava-se de ausência. Ficava a cada momento mais presente e menos claro qual seria o seu destino final. Faltava no entanto o mais importante na alçada do conhecimento: a concordância. Sua vontade transformava-se passo a passo em incompetência na medida em que sua ansiedade consumia sua beleza. Uma tormenta formava-se naquele momento então, uma vez que o mais terrível dos sentimentos nascia daquela incompatibilidade: solidão; pura e impalpável por parte de seu sujeito. Mundos mágicos são criados em seu nome e nada mais importa senão a repugnância em sinal de sua presença. Hora em vez, tal asco urge inevitável. Trancamos-nos então, no mundo falaz que nos apetece e passa as sujas mãos em nossa cabeça.
Pobres dos humanos incapazes que acreditam existir os capazes.

sábado, 21 de junho de 2008

RECANTO DOS MALDITOS - COMPLETO

NOTA DO AUTOR

Dizem que todo homem deve escrever um livro e plantar uma árvore durante sua vida. Bem, escrevi meu primeiro, e que seja o de muitos. As histórias aqui contadas são de pleno teor fictício (ou no mínimo exagerado ao extremo) Pensei muito em como abrir este livro a vocês que agora lêem esse pseudo-prefácio; não me ocorre nada. Lembrei de uma nota introdutória do primeiro livro do Vinicius de Moraes onde ele diz: (...) “erros de construção são meus erros de formação” e acho que cabe bem no meu prefácio também.
Os contos que aqui estão, não decorrem numa ordem lógica, no entanto, tem sentido interligado. Suas disposições também não estão por ordem de criação, e sim na ordem que minha cabeça quis. Todos decorrem numa mesma cidade imaginária, ou seja: Recanto dos Malvinos.
No mais, é isso ai. Espero que gostem e ...
Boa Leitura!
A LIGA DAS PUTAS


1

Uma única espiriteira alumiava o quarto, dando um aspecto mais sujo àquelas paredes já tão sujas e descascáveis. A sombra de dois homens projetava-se na parede fazendo das sombras, gigantes negros fundindo-se e formando um terceiro ser. A iluminação no entanto, se modificava na medida em que isqueiros habilmente acendiam e apagavam; nesse momento era possível ver os rostos de Panamá e Aleijão, assim como era possível ouvir som da pedra de crack queimando sobre o cachimbo.
As noites se passavam como dias, e seu contrario também é verdadeiro. Não existia para aqueles dois indivíduos diferença. Não existia nada para aqueles dois senão a droga. Que como regra, também não tinha quantidade que cessasse a gana.
Frente a casa onde tal quarto se encontrava, uma moto 125 cilindradas pertencente a Panamá esperava a hora de voar mais uma vez ao morro; virar algum objeto em pedra.
A permuta muitas vezes é a moeda corrente dos viciados. Nessas ocasiões a droga sofre uma supervalorização, culminando em absurdos do tipo: uma bicicleta por um papel. Não era o caso desta vez; no entanto, não menos absurdo, um aparelho de som foi eleito.
Dirigiram-se a frente da casa pisando em ovos. Abriram o portão com leveza milimétrica possível somente a usuários químicos. Subiram na moto e saíram na banguela para não causar alarde; deram a partida só no fim da ladeira, e sumiram nas vielas.
Uma biqueira como são chamados popularmente os pontos de venda de substâncias ilícitas; é um ambiente altamente carregado. Comumente, encontra-se um único homem – ou mulher, tanto faz – com sua sacola de supermercado cheia até a metade com cores que distinguem sabores e sensações para todos os gostos. Amarelo, cocaína... Azul, maconha... rosa, crack.... Uma bomboniere pós-moderna.
A aparente falta de segurança dos que portam essas sacolas é falsa. Olhos mais atentos captam com facilidade a presença de acólitos armados a sua volta; prontos para “mandar falar com Deus”, o mais cristão dos transeuntes caso este não lhe transpareça confiança. Nem sempre fuzilam os cristãos passivos de culpa.
A moto se aproxima e as palavras são poucas; o dialeto é entendido com facilidade, não carece retórica, já que ambas as partes já sabem o objetivo principal. Panamá da o lance:

- Fazê uma treta no som?
- Qué u`quê?
- Pedra!
- Quantas?
- Duas!
- Num vira... Uma!
- Firmeza!

E assim o aparelho é trocado sem nenhum pudor econômico. Mas isso não importa, a noite todo gato é pardo; hora de voltar.

A moto segue acelerando quase tão rápido quanto os corações; palpitantes a qualquer sinal de luz que se assemelhe a um giro-flex de viatura. Cruza as lombadas pelos cantos evitando sua corcova e vazando sinal vermelho, é algo como jogar roleta russa utilizando a rua de agulha e o veículo alheio de cão.

Tanto Panamá quanto aleijão, sabe que a volta da biqueira é a hora mais tensa da jornada. É neste estágio que tudo pode ir por água a baixo. Ainda mais a aleijão, que tem uma perna mais curta que a outra.
Uma nova luz aparece no horizonte próximo, seus corações disparam, e desta vez não diminuem mais.

Com uma arma apontada à sua cabeça fica difícil raciocinar. Com uma arma apontada pra sua cabeça chapada de crack fica impossível.
Tapas e murros na costela é o idioma policial. Suas bocas são usadas tão pouco e somente para fazer perguntas. O corpo e as armas para demonstrar as conseqüências da não cooperação.
Normalmente o viciado dispensa o flagrante antes deste se concretizar. Não foi esse o caso.

- Pegô o bagulho onde? - Diz o chefe da operação: investigador Dagoberto, um dos piores policiais da cidade; dizem! – Abre o bico nóia!

No pouco da viatura que Aleijão podia ver – Já que era cego de um olho – transparecia apenas três letras da sigla: R.R.A..

- Tão pensando que somo otário? Aqui é G.A.R.R.A. – e um soco trinca uma costela –, porra!
A placa da moto nesta altura já foi puxada tal como a ficha de antecedentes dos meliantes. Falta somente puxar a memória.

- Cêis num tão afim de fala né seus pau no cú. Firmeza.... Num tenho pressa. – Dagoberto abre o capo da viatura – Mas acho que vocês deveriam ter...

Uma “chupeta” consiste em passar a energia de uma bateria carregada à outra fechando um circuito contínuo; a diferença, é que ao invés de bateria na outra extremidade do fio, investigador Dagoberto conectou os mamilos de Aleijão, e segurava o “jacaré” pronto a fechar o circuito.

- Iaí, pau no cú... Pegô onde?
- Pelo amor de Deus, Senhô... Eles me mata...
- Morrê não é o pior que pode te acontecer filho da puta!

Dagoberto fecha o curto. Aleijão revira o olho e se debate em meio à corrente elétrica que o investigador cessa a tempo de mantê-lo vivo.

- Na próxima teu coração explode!

Panamá estava, no entanto, mais aterrorizado que Aleijão; que naquele momento mal sentia seu corpo, que dirá seu medo.

- Por tudo que é sagrado senhor. Vai mata meu brother. Num precisa disso. Somo trabalhador...
- O outro resolveu brinca também. – investigador Dagoberto gesticula a outro policial enquanto Aleijão vegeta moribundo no chão – Traz esse aqui pra vê se o choque acorda ele...

Panamá entra em pânico. Os “jacarés” presos aos seus mamilos já seria tortura suficiente para fazer qualquer um confessar ter matado Kennedy. E o choque de mente vindo de Dagoberto era talvez mais aterrorizador que o vindo da bateria.

- Vai fica torradinho. – ironiza Dagoberto – Sabe que eu nunca pluguei isso em alguém e tirei sem dar pelo menos um choquinho?
- Pelo amor de Deus senhor. Tenho coração fraco por conta da droga.
- Então vai ser meu recorde, filho da puta... Vai explodi na primeira carga. – o investigador ameaça fechar o circuito, Panamá caga em si mesmo e cede.

- Eu falo! Eu falo. Só num me dá esse choque pelo amor de Deus...

O investigador solta uma gargalhada de satisfação e proclama ao resto:

- Bora lá macacada! Os ramelão num agüentaro. Bota no chiqueiro e vamo roda pra conversá...

Panamá deu os detalhes exigidos pelo policial enquanto Aleijão aos poucos voltava a si. O investigador bateu um rádio e uma viatura foi designada ao ponto onde se encontrava a biqueira.
Assim, foram detidos: Panamá, Aleijão, e os traficas.

Delegacias são lugares frios e sem vida. Como se as pessoas que ali trabalham tivessem deixado de existir como pessoas. Tornaram-se maquinas, calejadas pela vida insólita que levam pra ganhar o pão. – Talvez por isso tirem tanto o pão dos outros.
Uma sala guardava pessoas de tipos mais diversos: travestis; bêbados; pederastas; e ali, encontravam-se Panamá e Aleijão, aguardando para serem julgados pelo legislador máximo daquele distrito: Delegado Diaz.
Fazia dez minutos que o delegado interrogava os traficantes que, para a sorte de Aleijão e Panamá, não os havia visto; duas salas davam na sala do delegado para que nesses casos, delator e delatado não se cruzem.
Quinze minutos se passaram até que Dagoberto saísse da sala do delegado.

- Bora lá seus nóia. Ta tudo acertado.

E os enfiou novamente no chiqueirinho da viatura.

- Pra onde cê ta levando nóis – Indagou Panamá.
- Cala boca ai seu pau no cú...

Panamá pôde perceber que havia outra viatura a frente da deles, e que dois homens estavam naquele chiqueirinho. Aleijão estava em choque.

- Tamo indo pra outra delegacia, senhor?

Dagoberto responde com uma borrifada de spray de pimenta que, pela distância, deve tê-lo afetado também.

- Já mandei cala a boca, porra.

Finalmente a viatura parou e Panamá e Aleijão são descarregados, ainda que semi cegos pelo spray, puderam identificar onde estavam. Na biqueira.

- É isso ai seus otário. – diz Dagoberto – Isso aqui agora é pra vocês larga a mão de ser alcagüete.

A venda de drogas é um comércio altamente lucrativo. Movimenta milhões por ano. Esse fato logicamente não passa inerte à vontade e a ganância da defesa pública. Que acima disso, por vezes cria formas de se bem-feitorar com a situação.

- Ai –dirigi-se o investigador a um dos traficantes, que era dês-algemado por outro policial – Esses aqui foi os que caguetáro vocês! Como combinado com o delega... Tá ai na mão de vocês. Façam bom proveito...

E a viatura partiu. Deixando duas vítimas da estrutura legislativa para serem julgados por seus algozes.
Na manhã seguinte, uma breve manchete no jornal:

“Encontrados dois corpos carbonizados e com as línguas cortadas. IML diz não existir condições de identificação; policia se omiti.” A3



2

Lígia Scapullato entrou cedo na vida. Aos quinze já perambulava pelo porto e vendia o corpo aos pescadores de mariscos. Também pudera, aos quatorze foi desvirginada pelo próprio pai, que a possuiu bêbado e violentamente na noite de natal. Um presente que jamais esqueceu.
Não demorou muito fugiu de casa, transformou sua vida em uma jornada sem rumo; de caminhão em caminhão, prestava favores sexuais em troca de um destino qualquer. Foi assim, até o dia em que conheceu Laura.
Laura era mulher vivida e sagaz, era a meretriz mestra da famigerada casa de massagens La Notche, localizada ao norte do Paraná. Laura lhe acolheu como aprendiz, a considerava quase como filha, e ensinou-lhe os macetes e mazelas da profissão.
Na noite em que Laura morreu, vitima de uma overdose de cocaína; Lígia adentrou seu escritório e afanou o dinheiro do cofre. Sabia que era a única que tinha a combinação, e quando depois de um bom tempo, finalmente conseguissem arrombar o cofre; ela já estaria em São Paulo.
Lígia partiu assim com uma quantia razoável de dinheiro e incontáveis ensinamentos de Laura. Não houve remorso, nem uma lagrima; só raiva. Pois no fundo, Lígia sabia que a morte de Laura era somente a morte de mais uma vítima de si mesmo.
Em São Paulo Lígia começou a erigir seu império, começou com a boate “Serra Leoa”, uma homenagem a Laura que jurava provir da cidade africana. Em pouco tempo, tornou-se referência na região, e cansada da desorganização eminente da classe prostituinte, fundou a popularmente conhecida como: Liga das Putas, algo semelhante a um sindicato do submundo. Criou poder dentre meretrizes de toda cidade, tendo papel por muitas vezes de tutora e protetora de todas aquelas que tomavam como objeto de trabalho a própria carcaça.
Tamanho status no entanto, não é coisa que se alcança sem fazer concessões, e é por esse motivo, que atende sem pestanejar, autoridades e políticos de toda espécie e escalão sem cobrar michê.

Era uma noite de pouco movimento no Serra Leoa. As luzes movimentavam-se sem a presença das meninas para lhe dar cor, e a música soava opaca para os poucos ouvidos que a acompanhavam. Dois gatos pingados ocupavam o balcão, acompanhados de duas meninas que assediavam seus bolsos desinteressados. Somente um programa estava em andamento, porém, era o mais importante
O Delegado Anacleto Diaz era freqüentador assíduo do recinto, tinha por hábito, levar a cama sempre a mesma guria; Carmine. Carmine era morena voluptuosa, de cintura fina e quadris largos. A bunda parecia desenhada sob a saia que lhe acentuava; os cabelos negros e lisos, tocavam levemente seu coxie, de tempo em hora, revelando dois furinhos que lhe marcavam o começo das nádegas. Olhos verdes fechavam o pacote.
Era a obsessão de Diaz, e naquela noite, não foi diferente. Ao chegar, lhe enconchou abruptamente por traz, roçando-lhe o queixo de barba mal feita no pescoço, despejando-lhe as mesmas palavras sinuosas de sempre ao ouvido:

- Oi nenenzinho! Papai chegou pra brincar...

Carmine o odiava, mas Lídia sempre disse, que gostar de cliente é chupar cabeça de cobra. E sendo assim, noite após noite, saciava os desejos sujos do delegado, que além de tudo, era o delegado; cliente de cama cativa.

Carmine profissional que era, levava o delegado ao ápice do prazer a dois. Ao passo que emitia gemidos de falso prazer, tocava os seios em sinal de falsa entrega e simulava falsos orgasmos. O delegado ia ao delírio sendo cavalgado por Carmine.

- Isso meu touro, enfia forte que eu gosto.
- Vem minha égua, pula feito uma cabrita.

A fazenda sexual do delegado normalmente estendia-se por horas, Carmine lhe fazia gozar ao menos três vezes por programa.
Aquela noite no entanto, o delegado demorava mais que o habitual, e Carmine já se enchia da pica do delegado que não cedia. Botou ritmo então.

- Vai vaca... Assim... Assim...

O delegado apertou-a pelos quadris e a castigou com força que Carmine sentiu no fundo de seu eu. Um som parecido ao de um urso em agonia vazava a boca de Diaz fazendo com que até mesmo Carmine, sentisse vergonha.

- Isso piranha vem... Vem... VEEEEM.

Carmine gritava também e naquela altura achava que o pau do delegado havia dobrado de tamanho. Sentiu um último apertão nos quadris, o mais forte de todos, sucedido por uma moleza. O delegado gozou, e desabou na cama. Carmine o abraçou em falso carinho.

- Ai meu urso... Hoje cê ta hein...

Não houve resposta, a moleza do delegado também era extraordinária, e mais que isso, Carmine engoliu seco e suou frio, ao constatar que a moleza era póstuma. Falsa.

Carmine saiu aos prantos do quarto em direção ao salão, àquela altura, os dois gatos pingados já haviam sido espirrados do recinto por incompatibilidade financeira; Lígia correu em socorro de sua menina, que mal conseguia falar em repúdio a transa com o cadáver.

- Que foi fía? – Lígia acudiu – Que aconteceu
- Ele morreu capitã!
- Morreu como minha nossa senhora?
- Num sei! Só sei que morreu... – E o pranto voltou a invadir Carmine.

Lígia era mulher fria. Sabia bem o que fazer sem pestanejar com chororo. Se o delegado tinha morrido no seu estabelecimento, era o caso de oculta; ou sofre as represálias.

- Vanessa – Dirige-se Lígia a outra menina – vai no quarto e procura nas roupa do delegado a chave do carro dele. Depois veste ele.
- Mas porque capitã?
- Vai logo deixa de moleza criatura.- E a menina correu.

Ligia acomodou o corpo do delegado no banco de traz do carro. Sentou-se ao volante, e deferiu ordens a suas concubinas.

- Vocês toquem a casa e finjam que nada aconteceu. Vou dá um jeito de parecer que ele morreu depois de sair.

E o carro partiu deixando a marca do pneu cantor para traz. Lígia tinha formulado em sua mente uma morte justa para o delegado: Após uma noite de muito trabalho em seu escritório na delegacia, o delegado Anacleto Diaz dirigia-se calmamente para sua residência, quando um ataque cardíaco fulminante o fez perder o controle do veículo e despencar viaduto abaixo. Fácil de engolir.

Com o carro parado na medida calculada, Lígia Dispôs o defunto na posição de condutor, enganchou o pé do cadáver ao acelerador engatou a marcha e o empurrou para sua segunda morte.
Um enorme estrondo tomou a noite quando o carro varou o guardirreio, Lígia esperava o estrondo do impacto com o chão, quando este foi antecipado por um som de freada, E sucedido por um estrondo duas vezes maior. Correu para o guardirreio e viu que o carro do delegado havia atingido outro carro na queda, atingido em cheio. Incrivelmente aquilo não a abalou, deixou até escapar uma leve risada de criança que fez arte, atravessou a avenida, e subiu no primeiro ônibus que apareceu. Não tinha passado à roleta e já ouvia as sirenes do resgate.

No outro dia, o funeral do delegado saia. Duas filhas e a esposa choravam a perda; cercadas de amigos e parentes que dividiam a dor. Todos do distrito estavam presentes, e rodeavam o caixão emitindo mensagens de falsa sinceridade.

- Como era bom esse homem... - Honesto; caráter de ferro... - Nunca mais teremos um delegado como o Diaz

O ápice do enterro no entanto, foi o momento do discurso do homem mais próximo do delegado, seu amigo pessoal: investigador Dagoberto.

- Hoje é um dia triste na história. Deixa este mundo, o homem de maior caráter e coração que todos aqui presentes desfrutaram do prazer de conhecer... Senhor Anacleto Diaz. Delegado Diaz, para muitos de nós. Este homem, que tanto tempo nos direcionou rumo ao bem, deixa este mundo como herói; dedicando seus últimos momentos de vida ao trabalho, perdeu a mesma em perseguição a traficantes; dois marginais, que carregavam consigo, vinte quilos de entorpecente em seu veículo. Em um ato de puro altruísmo, atirou o próprio carro e a própria vida sobre o os meliantes, como forma de coibi-los; como forma de coibir, o trafico que deflora e deforma a sociedade contemporânea...

Ao som de aplausos a salva de tiros começa e o caixão desce sublime rumo ao leito onde descansa o cadáver do delegado Anacleto Diaz. O herói.




3

No morro do Remendão existe um Deus. Este é Josué, o dono da boca. As crianças lhe estimam e imitam; também pudera, Josué é quem lhes dá proteção, ovo de páscoa e presente de natal. Os demais o respeitam e o tomam por muito como tutor e conselheiro. Abaixo do morro no entanto, Josué é odiado, como sempre são odiados os que monopolizam ambientes, principalmente quando este ambiente é o morro ao lado de seu bairro, palco de tiroteios e chacinas que tanto perturbam a opinião pública. Fazendo de Josué então, uma androgenia de Deus e Diabo
No momento porém, o estranho ser está zangado. A polícia mais uma vez havia lhe arrancado dinheiro, e desta vez; muito dinheiro.

- Tamo fudido. – explica Josué. – A lei é simples, ou paga ou morre!
- Mas nóis temo as droga ainda! – Esse é Zé preto, um dos funcionários de Josué. – Num dá pra vende?
- Marquei de paga o Colombiano amanhã, e contava com o dinheiro que já havia feito; não com o que haveria de faze. Num dá pra vende tudo numa noite.
- E se baixasse o preço?
- Se é loco... Ia chove nóia aqui; iai sim nois tava mais pego ainda. Onde chove nóia. Chove ganso. Onde têm ganso tem propina.

A realidade de Josué era essa; e a honra, a dádiva mais preciosa a ser preservada nessa vida. Porém, Josué sabe que não existe honra na morte, por mais heróica e justificável que ela seja.

- Se bem, Zé preto... Que tu me deu uma idéia... Vai busca o carro, e chame Isaias. Vo faze uma ligação....

*

Postado no volante, Zé preto estava assustado. Não ousara dissentir com Josué, mas não se sentia a vontade com o plano.

- Aí, Josué, num é arriscado anda com tanto bagulho na mala?
- Relaxa, Preto. Vai dá certo.
- E se o Colombiano fica sabendo que tu vendeu pro pior inimigo dele, ainda por cima a preço de custo.
- Só vai sabe se cêis conta, ou se o Bolívia conta. Cêis vão conta?

Tanto Zé preto quanto Isaias, mais que rapidamente fizeram que não com a cabeça.

- Pois é, o Bolívia é o beneficiário dessa transação e também num vai conta. Então, pisa e vai, seus puto.

E assim, partiram Zé preto e Isaias rumo ao covil do inimigo. Eles sabiam que Josué não teria tal idéia de giríco, caso não estivesse desesperado. E quando o dono da boca se desespera, é hora dos funcionários fazerem o mesmo.
Zé preto e Isaias não participavam diretamente das vendas, ficavam mais na posição de conselheiros e executores dos negócios de Josué; que os mantinha a maior parte do tempo longe da boca, na intenção de poupar suas imagens junto a policia.
Josué não os tinha como amigos. Eram funcionários; não mais que isso.

- Aí, Isaias, num to gostando dessa parada.
- Nem eu, mano. Rodar com isso tudo de droga é sinistro...

Sair do morro era algo como andar sobre um campo minado. A policia parece ter um rastreador natural de vagabundo mal, e sempre os encontrava. Em raríssimas exceções voltavam pro morro sem um enquadro pra contar. O problema é que dessa vez, caso ocorresse tal situação; dificilmente voltariam pro morro.

- Por onde eu quebro Isaias? – indaga Zé preto ao aproximar-se de uma bifurcação.
- Sei lá meu, por que tu não trouxe o rádio pra monitora a freqüência dos homi?
- Esqueci, brow.
- Então faz qualquer merda; num tem como sabe mesmo.

Isaias deu um ar de gozação que não teria acrescentado caso tivesse ciência do que lhes esperava a esquerda.

- Se liga ai, preto. É os homi!

A policia ali estava, com sua viatura esperando o primeiro que aparecesse. Por ironia do destino, foi Zé preto e Isaias. A arma lhes é apontada, e só resta parar, ou morrer.

- Os dois com a mão no capo, vai. – diz o policial arrancando-lhes do carro– tão vindo dá onde?

Nesse caso, ambos calejados da vida, tinham um enredo preparado para que não houvesse contradições. Por mais ridículo que parecesse tentar contornar o fato de ter vinte quilos de droga na porta mala; precisavam tentar.

- Estamos voltando de um aniversario, - diz Zé preto - senhor.
- Aniversario de quem? Indaga o policia.
- Sobrinha minha, senhor
- Algum de vocês tem passagem?
- Não senhor – mentiroso.
- Documento dos dois e documento do carro.

A tensão aumenta. Tanto Zé preto quanto Isaias, não tinham documento, não com sigo; quanto ao carro; nem em outro lugar.

- Só um momento, senhor. Deve de estar no porta-luvas.

Quanto aos documentos pessoais poderiam até contornar. Porém sem o documento do carro, uma revista seria eminente. Se bem que a ausência de tal eminência não era mais que uma utopia, e eles sabiam. Mas ganhar tempo de vida é o que torna suportável o momento que antecede a execução. Isso não os impedia de quase se urinar.
Zé preto revirava o porta-luvas sem esperança, quando um milagre aconteceu: Uma estática invade o silêncio, seguida de uma voz. Era o radio da viatura.

Atenção. Elemento armado e perigoso encurralado no cruzamento da Avenida Estoríl com Louisiana. Solicitamos todos os carros. Repetindo...

Nesse momento os policiais correm todos para a viatura. Zé preto e Isaias, boquiabertos assistem a cena, quando tem sua introspecção interrompida pelo policial que outrora os revistava.

- Tão liberado. Hoje é o dia de sorte de vocês.

O policial dirige-se a viatura embarca e parte na velocidade da luz. Exatamente como eles desejavam; como um raio.
Eles entram no carro e partem, com uma alegria que não lhes cabia.

- Hoje é o dia de sorte de vocês. – Isaias entoa a voz grossa do policial e ambos caem na gargalhada.
- Caralho bicho! Essa foi foda. To até sem rumo – e ri Zé preto – Viro onde agora?
- Vira a direita e pega a paralela do viaduto. Tanto faz... É nosso dia de sorte.

E as gargalhadas continuam na noite.

A rua paralela ao viaduto é escura e mórbida, por vezes é possível ver moradores de rua aquecendo-se com ajuda de aditivos, tal como crack. Dentro do carro as risadas ciciavam na medida em que a euforia pós-traumática de Zé preto e Isaias começava a estabilizar. E o silêncio voltava aos poucos assim como o medo de adentrar os domínios de Bolívia.

- É só entrega o bagulho e colhe a grana? – indaga Isaias.
- Só.
- E depois?
- Depois nóis volta vazado.

A conversa continua nesse pé até ser interrompida por um estrondo vindo de cima, que fez Zé preto estancar o carro numa freada brusca. Visualizaram a sombra de um carro atravessando o guardirreio do viaduto, e um pouco antes do carro aterrissar-lhes sobre o capo, um pensamento ocorreu em simpatia:
Hoje é o dia de sorte...


4

Sob a noite, em um velho posto de gasolina abandonado ao pé do morro do Remendão, Josué sente o gosto amargo da arma de Colombiano.
A luz de um poste distante é a única fonte de iluminação, criando uma penumbra fantasmagórica ao cenário, que acredita Josué, ser o palco de seu desfecho em se falando de vida.
Ali, de joelhos, com as mãos amarradas para trás. Josué sangra pela boca, pelo nariz, pela orelha; ferimentos provenientes da quebra da única e principal regra de seu mundo: Lealdade.

- Vou perguntar mais uma vez, Josué – interroga Colombiano – depois atiro em teu joelho; cadê minha grana?

Josué com a arma na boca balbucia palavras incompreensíveis.

- Que disse? – Colombiano libera a boca de Josué.
- Juro, Colombiano. Vendi tudo de uma vez. Tô esperando o pagamento pra amanhã. É garantido.

E outra coronhada carimba-lhe a face.

Josué sabia que já estava morto. Tentava ganhar tempo. Agora, tempo para o que; nem ele mesmo saberia responder.

- Tu deve de me achar com cara de otário né Josué? É agora que lhe arranco a fuça. – Colombiano engatilhou a arma, e colocou na ponta do nariz de Josué.

Colombiano era um sujeito forte, meio gordo, que de colombiano carregava somente a alcunha; já que havia nascido em São João do Meriti no Rio de Janeiro. Veio para São Paulo ainda menino, e já nesta mesma época engendrou-se no mundo do crime. Criou fama, subiu na vida na base da bala; e agora, se preparava para enfiar a fama no meio da cara de Josué.

- Tem alguma última palavra, senhorita? – A pouca luz que batia no posto iluminava Colombiano por trás, projetando uma sombra sobre Josué. De vez em tempo, essa luz refletia a arma; um 38 cromado; enorme como imaginamos que a vida deve ser. De vez em tempos, errados.

- O gato comeu sua língua? – Colombiano coloca o cão de volta em repouso ao mesmo tempo em que tira a arma da boca de Josué – Fala alguma coisa desgraçado!
- Eu confesso, Colombiano! A policia confisco a droga. Dois dos meus estavam indo faze uma entrega e sofreram acidente. O carro do delegado caiu do viaduto em cima do carro deles, a policia levou tudo. Juro pela alma de minha mãe. É tudo que eu sei...
- Que papo mais furado, Josué. Tu devia sair do crime e virar comediante. Quer dizer, isso se tu fosse viver além de hoje, claro. – O cão volta a ser engatilhado e Josué cerra com força os olhos, um momento flash back daqueles que antecedem a morte lhe passou pela cabeça, como não encontrou lembrança que valesse ser lembrada, voltou pra sua desgraça momentânea.

- Diz pro sete peles que demoro a chegar, Josué.

Josué imaginou que fosse morrer do coração antes do tiro lhe atingir. E de repente o estampido, BAM!. Josué se mantém de olhos fechados, estático esperando a dor ou a morte. Mas nenhuma das duas chega. Abre os olhos, a tempo de ver Colombiano caindo.
Um vulto começa a materializar-se a partir das trevas, em direção a Josué; um homem alto e magro portando uma arma começa a transparecer. O terno branco fica perceptível à medida que ele se aproxima, e Josué reconhece seu salvador. Bolívia.

- Deus do céu, Bolívia. Tu me salvou. Me desamarre aqui, vamo.
- Tinha vindo aqui lhe cobrar minha droga e encontrei o maledeto do Colombiano. Por isso atirei. Mas ouvi a historia que contou pra ele. É verdade, Josué?
- É verdade sim! A droga tá com a policia, disseram que investigador Dagoberto é quem apreendeu, depois do acidente, com o delegado. Mas vá, me solte e lhe conto mais.
- Já sei o suficiente, Josué!

BAM

Mais uma bala rompe a noite, e dessa vez, Josué sente tanto a dor; quanto a morte.



5

- Alo, Bolívia? É Lígia. Ele esta aqui.

O telefone retorna ao gancho e Lígia se volta ao salão do Serra Leoa, com naturalidade, como se não tivesse acabado de condenar um homem a morte. No entanto, bem se sabia que em tempos tão tenebrosos quanto os contemporâneos; morrer não era o pior que poderia acontecer a um homem.
Nesse momento; o investigador Dagoberto encontra-se em um dos quartos, acompanhado de Carmine. Sem nem ao menos imaginar, que copula no palco da morte do delegado. E da sua.

- Bem que o delegado Diaz disse que tu era uma delicia – diz Dagoberto enquanto Carmine dirigi-se ao chuveiro – Não tinha tido coragem de te comer enquanto o delegado tava vivo. Ele era vidrado em tu. Mas agora... Pode deixar que eu vou ocupar o lugar dele nessa cama.
- Pode ter certeza que sim – Responde Carmine, mais a si mesma que ao investigador.

Toc toc toc – ouve-se à porta.

- Num atrapalha. Vou transa essa piranha mais umas quatro vez ainda – E ri maquiavélico Dagoberto – Pode sair fora.

A porta volta a emitir o som, e Dagoberto se enerva.

- Mas que merda, já falei que...

A porta é arrombada, e Dagoberto ainda nu; não tem tempo de alcançar sua arma ao pé da cama. E é então, que vê o rosto de Bolívia surgir sob o chapéu branco que lhe ocupa a cabeça.

- Bolívia! Tá loco, filho da puta?
- Cala a boca, pau no cú. – um tiro atinge a mão de Dagoberto que ainda tentava alcançar a arma. Um grito animal é vomitado.
- Filho da puta, minha mão. Esqueceu do combinado? Num mexo contigo tu não mexe comigo.
- Combinado é o caralho! Tú apreendeu droga das minha.
- Das tua uma porra. Quem tava no carro era tudo nego do Josué; que faz negócio com o Colombiano, porra.
- Fazia. Colombiano subiu. E aquela droga tava vindo pra mim.
- Como é que eu ia saber, caralho?
- Desse teu pulo.
- Mas foi o delegado que pegou os cara!
- É memo? Não diga. Tinha dito que era pra tu confisca a droga de Josué, não faze um acordo , e arranca grana. Refiz o plano e aceitei compra a droga do Josué, por conta da tua incompetência. Paga o maldito num ia. Inclusive esse também já subiu.
- O acordo partiu do delegado, eu ia faze como o combinado. Ele fez o acerto com Josué.
- Então como o delegado tá morto. Quem vai paga minha honra é tu.

1,2,3,4 tiros atingem o peito do investigador Dagoberto, que desaba sem vida na cama. Carmine no bahneiro enrolada na toalha; olha imparcial, sem sentimento algum. Bolívia olha para a deusa, e deixa escapar um sorriso, ao mesmo tempo em que se volta para o salão, e dirigi-se para Lígia.

- Um dos meus vai vir acertar contigo o combinado. Mas, diga uma coisa; quem é aquela ninfeta no quarto?
- É Carmine. A preferida aqui no Serra Leoa.
- Limpa aquela bagunça então. Que quero dá uma com essa!
- Seu desejo é uma ordem...

Lígia acena para Carmine, que a acompanha a seu escritório.Outras duas meninas dirigem-se para o quarto onde jaz o corpo de Dagoberto, fecham à porta e começam a arrumação. Lígia também fecha sua porta.

- Parabéns, Carmine. A entrega tá saindo melhor que a encomenda. – Lígia a abraça por traz e contorna-lhe os seios com as mãos – Tu fez um teatro perfeito com o delegado.
- Acha mesmo capitã?
- Se acho. – Lígia lhe toca forte o sexo e Carmine geme. – Subimos o delegado; e de lambuja, Josué, Colombiano e Dagoberto. Falto só o Bolívia. E dominamos tudo. Lígia começa a beijar-lhe o pescoço e Carmine inclina a cabeça em sinal de prazer.
- E como vai ser então?
- Vai ser do mesmo jeito. – Lígia volta-se para sua mesa e abre a primeira gaveta de onde tira um frasco. – Vou mandar entregar uma garrafa de champagne no quarto, e tu coloca no copo do Bolívia o mesmo tanto que pois no do delegado.
- Vai ser tudo nosso né capitã? Ficaremos juntas.
- Sim! – Lígia toca levemente a face de Carmine – A cidade vai tá na nossa mão. E você; na minha.

Lígia escorrega a mão pela orelha até a nuca de Carmine, segura firmemente. E lhe tasca um beijo molhado. Carmine lhe abraça forte; retribui o beijo.

- Vai ser tudo nosso, Carmine. Tudo. Meu amor.


MONIQUE E A GAIVOTA


A Gaivota

Movimentado, mas não lotado.
Somente pessoas conversando.
Falando o que casais falam toda manhã
Eu não tenho com quem falar. Não mais.
O garçom me trouxe o cardápio, mas não olhei. Sei exatamente o que quero comer.
Gaivota.
Não gosto de gaivota. Ou pelo menos acho que não gosto.
Meu peito parece uma locomotiva enquanto espero.
Sinto uma fisgada na barriga e me lembro que não tem a ver com meu apêndice.
Ajeito ”o grande dragão cromado guspidor de fogo nove milímetros” em minha cintura e tudo volta ao normal.
De longe vejo o garçom saindo da cozinha carregando sua bandeja.
O prato que ele traz é grande
Achei que fosse menor.
Ele coloca à minha frente e me olha com cara de: “Me agradeça logo e me deixe voltar”
Eu digo que não quero beber nada.
Corto um naco grande de carne, o suficiente para encher minha boca.
Sete mastigadas são o suficiente. Não há mais duvida.
Desculpe-me meu amor. Eu te amo.
O dragão cromado se enfurece.
E a escuridão me acolhe.

Plano de Vôo

O mar é um Deus.
Se o que define um Deus é sua grandeza, o mar definitivamente é um Deus.
Ou se o que define um Deus é o beneficio que ele traz a humanidade... Imagine um mundo sem mar.
Mas olhando por esse ponto de vista o mar nos traz mais benefícios visíveis que o próprio Deus. Será que Deus esta no mar? Porém em contraponto o ar é mais importante que o mar.
Se colocarmos em uma escala de importância...
Toca o celular.
- Alô? Bom dia meu amor. Dormiu bem? Tinha certeza que sim. O que? O vôo? Claro que está marcado. Isso, só eu você e as estrelas. Que? Quem vai pilotar? Ora haha claro que é um piloto né amor. Hahaha Mas ele fica em uma cabine isolada. Teremos toda privacidade do mundo. Não se preocupe, estou cuidando de tudo pessoalmente. Encontro-te no porto as onze em ponto? Sabia que sim. Eu te amo. Eu sei que sim. Um beijo. Até logo meu amor.
Minha mãe sempre dizia que o melhor dia do casamento se passa na lua de mel. E o pior decorre desse em diante. É, com certeza ela não era muito otimista. Já eu...Não consigo ver algo ruim nem que quisesse, Principalmente em meu amor. Sei que nunca a decepcionaria.
Opa, e falando em decepcionar...Melhor falar com o piloto e confirmar tudo.

O Vôo

Onze horas!
O piloto esta a posto.
Seguro um champagne em uma mão e um buquê na outra.
E fito apreensivamente a entrada do porto. Cada luz de farol que passa faz meu coração acelerar. Até que ele acelera sem parar e ela chega. Tão linda como se imagina que uma Deusa possa ser. Eu a abraço e peço desculpas pelo transtorno, ela se aperta junto a mim e diz que esta tudo bem. Sou um maldito cara de sorte.
O sonho dela sempre foi passar a lua de mel sobrevoando o mar. Como meus negócios nos atrasaram...achei justo fazer a sua vontade. Meu sonho era uma cama inflável. Então mandei colocar uma em meu avião. Batizado não por acaso de Monique.

A Deriva

Frio!
Tudo que sinto é frio, não sinto as pernas não sinto nada, só sinto o frio.
Abro os olhos e é noite. Minha lua de mel. Algo toma forma sobre mim.
O piloto.
Ouço quase que imperceptível seu balbuciar de palavras. Ele diz que ela resistiu, que nos salvou. Não sei exatamente do que esta falando. Tento perguntar de minha esposa, mas não consigo. Ele diz que estamos nela há quatro dias diz algo sobre o tempo e como não há chuvas nessa época. Ele até parece animado. Diz que preciso me alimentar, que iremos resistir. E então traz alguma coisa até minha boca. E antes que emitisse outra tentativa de falar ele me disse: Você precisa comer, eu sei que esta com fome, coma vai. Achei no mar, é gaivota, eu comi, é bom, é gaivota coma. E então eu comi, comi até me entalar, o gosto não era bom, era diferente, nunca me esquecerei desse gosto, mas mesmo assim comi com um apetite que nunca havia experimentado antes. E então percebi que estava em minha cama inflável, boiando no meio do mar.
Onde esta minha esposa?
O frio voltou.

O Resgate

No sexto dia me encontraram. Atônitos não acreditavam que consegui resistir. Queriam saber do que me alimentei. Peixes? Não, gaivota, respondi inseguro... Nesse exato momento um terrível pensamento invadiu minha mente: - Não existem gaivotas em alto mar!
Mais tarde me disseram que uma falha mecânica travou uma das turbinas, o piloto tentou um pouso na água e o avião se estraçalhou. O piloto foi encontrado a quinze quilometro de mim. Ele ficou insano e nadou até a morte, é o que chamam de loucura marítima. Minha esposa segundo eles havia morrido na queda. Não me deixaram ver seu corpo. Disseram que seria pior pra mim. Ela não estava como antes. Ela estava, como posso dizer...ela havia sido parcialmente...
Devorada!
- Devorada ?


NOITE DOS NOCTÍVAGOS

1
Quatro e meia da manhã e os ânimos à flor da pele. Uma única discussão se dá girando em torno de uma única pauta: quem. Em volta de uma mesa de madeira com assento que em muito faz lembrar os assentos das merendas escolares, os noctívagos discutem financiamento e transporte. Quem vai? Quem tem? Quem pode? Quem quer? Esta última logicamente é a única concordância genérica no âmbito grupal do termo.
Uma outra certeza também paira tácita e permanente sobre todos: é a certeza que esta é uma fome que nunca acaba; uma sede que não sacia; um desejo que não esgota; um amor viciado que mastiga. Todos sabem o erro que cometem; por pudor ou sabedoria, sabem que o dia nascerá ensolarado e cinza; sabem que independentemente da beleza que lhes aflorar à vista, a feiúra preencherá sua visão. Mas não param.
De repente, com uma facilidade e velocidade que parece só existir na dimensão do errado, as condições para mais uma dose de rancor se integram quase que magicamente; e o carro parte mais uma vez.
Enquanto aguardam o retorno do arauto portador do senso comum, as conversas que partem de nossos noctívagos soam como palavras desconexas e sem sentido; voam emancipadas como quem atende a razão somente de seu criador. As latas se abrem em sinfonia incessante e os goles descem químicos e largos numa sede de anteontem.
Quando o retorno do mensageiro finalmente se dá, “moscas” voam sobre ele e acompanham-no passo a passo como uma alcatéia acompanha uma fêmea no cio. Línguas lambem beiços, olhos brilham estalados e todos rodeiam a rainha branca da noite, que neste momento repousa tranqüila e encapsulada.
Inalam a tristeza; um a um transferem a possibilidade de mão em mão. Todos reverenciam sobre a mesa e arqueiam ligeiros de volta a eretilidade. Ofegantes as conversas recomeçam; incompreensíveis e incoerentes, alusivas às almas dos noctívagos.
Vazias.

MAQUINAL
1
Por algum motivo que não consigo entender, acordo todos os dias as sete em ponto. Sou despertado sempre pelo mesmo sonho. Estou em um hospital, tento preencher desesperadamente uma ficha onde apenas números são colocados de forma aleatória, porém entendo perfeitamente naquele momento a disposição destes números. No sonho, estou com pressa pois acabei de roubar um caderno de receitas, e preciso fugir o mais rápido possível. Quando estou nos últimos números, um médico chama meu nome, engraçado; mas me lembro de tudo estar muito bem planejado. No sonho, o roubo era algo magistral dentro de sua harmonia incoerente. Mas esse é o momento em que algo saiu errado, trêmulo, termino de preencher a ficha, largo no chão, e corro para as escadas. O hospital é imenso, um prédio de intermináveis andares, pelos quais desço apressadamente as escadas me deparando diversas vezes com policiais subindo na direção oposta. Quanto tempo vai levar para que me desmascarem? Pois eu sei que o vão. Quanto tempo vai levar para chegar á saída? Bem... Essa é a terrível incógnita. As escadas são longas e diversas de curvas, eu começo a quase não tocar os pés no chão, desço as escadas agora deslizando sobre os degraus; e é nesse momento, que meu corpo me trai. Eu tropeço, plaino por alguns instantes, e antes de cair eu já sei que fui descoberto; quando finalmente chego ao chão, a dor é substituída por um susto. Esse que me acorda todas as manhãs.
Na cozinha o café de ontem está gelado. Claro, mas é assim que o tomo todas as manhãs, antes de qualquer coisa, preciso de um gole de café. Acendo um cigarro, e corro pro banheiro. Cago, escovo os dentes, lavo o rosto; e saio. Sete e quinze. Estou no ponto de ônibus. Não para trabalhar nem qualquer nobre finalidade. Sento-me no ponto de ônibus e a espero passar. Sempre linda, seu perfume sinto do outro lado da rua. Não de forma agressiva como sugere a força da expressão, mas suave como uma tragada de vida, enchendo os pulmões da esperança a muito perdida. Religiosamente almejo sua chegada com o furor de uma criança que espera o brinquedo novo. Mas palavras e gestos são pecados. Eu só a vejo, sinto seu perfume, e ela passa. Com a mesma rapidez de minha vida. Oh Deus se ao menos eu tivesse coragem....Ou um carro.
Tem um velho sentado ao meu lado agora, chamo de velho mas deve ser mais jovem que eu. Ele normalmente não fica ali. Começo a sentir ciúmes da minha psicose como se o direito de estar ali fosse somente meu, como se aquilo não fosse um ponto de ônibus, mas sim meu oráculo pessoal, em busca de um entendimento que nem eu sei qual é. Um lugar que necessito estar todos os dias e nunca me atrasar um segundo sequer, como se minha vida dependesse diretamente deste ritual e algo terrível fosse acontecer se acaso ele fosse quebrado. Eu sei que não é verdade, mas não tenho coragem de apostar no contrário.
- Que horas são?
- Sete e meia! – Me responde o velho.
- E agora?
- Como assim? – Ele me pergunta com cara de bobo. Ah o tempo. A ilusão de poder controlá-lo nos toma sempre de forma brutal, pois o segundo em que perguntei, acabou um segundo atrás. E assim, o presente é uma constante na qual nunca estaremos.
- Esqueça. Tenha um bom dia, velho.
Levanto-me e saio, atravesso a rua e sigo a minha direita beirando as árvores do parque e ouvindo os pássaros idiotas que cantam sempre fora do tempo, às vezes até gosto deles; mas hoje queria uma espingarda. Não ando muito e chego ao segundo ponto de meu ritual matinal: a padaria. Chego lá e tem um cara esquisito com cara de almofadinha sentado no meu lugar, será que é um complô? Desgraçado eu preciso deste lugar, não vou conseguir comer se não for no meu lugar de sempre, e a propósito; onde esta a Lucy? Na cozinha? No banheiro? Onde? Bem... Um problema de cada vez. Primeiro preciso recuperar meu lugar.
Com licença, almofadinha. Por acaso você já terminou o seu café ou vai demorar muito?
- Desculpe! O que você disse?
- Perguntei se você vai ficar ai enrolando para tomar esse café, afim de esperar a hora que eles começam a servir bebidas alcoólicas, ou vai sair logo daí.
- Você é algum tipo de maluco?
Maluco? Será que é isso? O mundo bombardeia massivamente com a idéia constante da rotina e quando alguém finalmente resolve segui-la, esse mesmo mundo te rotula de maluco?
Olha aqui seu almofadinha bêbado, fracassado e sujo. Existem “milhares” de lugares vagos nessa padaria, e você resolve sentar-se bem no meu? Sabe há quanto tempo eu me sento neste lugar? Você por acaso sabe a importância que tem para mim seguir meu ritual religiosamente da mesma forma? Ah não, você não sabe! Não saberia o significado da palavra importância nem que ele caísse nessa sua cabeça chata, e nem se tivesse capacidade de ficar sóbrio trinta minutos de seu dia que fosse, você entenderia o significado da palavra importância.
O cara esquisito se levantou, e foi embora. Sentei no meu lugar e esperei Lucy surgir radiante em seu sexy avental manchado de óleo, e a toca amarelada pela fumaça constante que vaza dos cigarros alheios; e pedi o que peço todas as manhãs:
- Lucy; quero você!
- E o que mais?
- Um pingado e um pão na chapa! Por favor.

*
Termino meu café e saio. Como sempre. Preciso seguir para meu próximo ponto: a banca de jornais.
Gosto de olhar as capas das revistas antes de comprar o mesmo jornal que compro todos os dias; e quase que ele realmente parece literalmente o mesmo. Tudo é uma enorme repetição. O mundo; as pessoas; as capas das revistas; os atores; as poses fotográficas; as mentiras tablóidianas... Ah... Eu poderia continuar infinitamente. Pego a porcaria do jornal e vou embora.
À volta pra minha casa costumo fazer por um caminho diferente; não gosto de fazer o mesmo caminho duas vezes no mesmo dia. E nunca faço. Passo por duas ruas a mais por conta disto; mas não me importa andar um pouco a mais, contanto que meu esquema diário esteja instável.
Minha casa é pequena: um quarto uma cozinha e um banheiro. Não preciso de mais que isso; e nem quero. Meu quarto tem uma parede com jornais empilhados até o teto em toda sua extensão quadrada. São os jornais dos últimos seis anos, não consigo jogá-los fora; e não jogo. Dos últimos seis anos porque nem sempre eu fui assim: metódico. Mas desde que aconteceu aquilo... Tão terrível... Não quero falar sobre isso.
É chegada a hora de assistir aquele programa que eu odeio. Aquela mulher insuportável, com suas receitas estúpidas e aquele animal de pelúcia com o qual ela conversa todas as manhãs jurando por Deus que ele está vivo. Que deplorável.
Ela começa com suas piadas sem graça e de repente uma coisa quebra meu esquema: uma dor atinge meu peito como uma facada, um tiro ou qualquer coisa do gênero; coração. Isso não acontece todo dia. Logo, não deveria estar acontecendo. Mas está. A dor começa a fazer meu braço esquerdo formigar e penso que devo chamar uma ambulância. Infelizmente não tenho telefone; se tivesse correria o risco de ele tocar em horários diferentes todos os dias. Jamais suportaria esta assimetria. A dor chega a um ápice... Insuportável... Insuportável... (...) Estabiliza. E então vira conforto. Isso é a morte. Não tem como morrer todo dia. Terei de aceitar esta mudança em minha rotina. Nesse momento me lembro de você, meu amor. E fico feliz em saber que sentiu este mesmo conforto que sinto agora; quando aconteceu aquilo... Tão terrível...




CAPITÃES DO LIXO

1
O poente contornava aquela imensa montanha de lixo no fim de tarde dezembrista. Caminhões chegavam a toda hora e despejavam chorume e sacos de cores diversas aumentando gradativamente a citada montanha; gradativamente também, aumentava a esperança das crianças conhecidas como “capitães do lixo”, que ali trabalhavam incessantes em busca de alimentos, roupas... Os mais esperançosos sonhavam em quem sabe até um brinquedo, um presente de natal já que este se aproximava. Às vezes até encontravam um braço de boneco, uma cabeça; e era como um troféu.
O nome capitães do lixo foi dado por um repórter que certa vez adentrou o lixão; certamente o nome veio inspirado em Jorge Amado, mas isso não vem ao caso. A presença de uma equipe de t.v. atiçou os ânimos da criançada, naquele dia, o repórter rodou pelo lixão e entrevistou diversos deles; mostrou-se indignado; clamou por providencias às autoridades; chorou no ar. A câmera foi desligada ao fim da transmissão, o repórter acendeu um cigarro, consultou a equipe quanto ao ibope atingido, e partiu. Nunca mais voltou; o ibope provavelmente não foi o esperado. Durante alguns dias, os capitães do lixo aguardaram que o repórter retornasse, com sua fúria televisiva que tanta esperança deu a seus corações; mas esse dia nunca chegou. Os ânimos se acalmaram, e a rotina voltou.
Malaquias era o mais novo de dois irmãos que integravam a “gangue”, e era o único que ainda acreditava na volta do repórter.

- Ocês vão vê. Ele volta. Traz os brinquedo que falo. E mortadela. – Pregava Malaquias ao resto do grupo.
- Cala a boca e fuça, Malaquias! – Incrédulo, o grupo respondia.

Essa crença já passava dos seis meses, e Malaquias começava a temer a falta de esperança que hora em vez enchia sua cabeça. Mas refutava a idéia pessimista e voltava ao seu sonho juvenil.
Naquele dia, todos esperavam pelo caminhão das nove horas. Era o melhor caminhão; recolhia o lixo dos restaurantes do centro e trazia sempre um resto de comida fresca. Comida que os “madamos e madamas” dos prédios de vidro e aço que ocupavam o centro não terminavam de comer. Por estar fria; por estar sem sal; por não gostarem disso; por não gostarem daquilo... Os capitães gostavam; fria, sem sal, e até estragada.
Comida interessava por demais a Malaquias, porém, o que no entanto não lhe saia da cabeça era o natal. Estava crédulo que naquela noite encontraria um brinquedo inteiro. Um brinquedo que alguma criança rica poderia ter jogado fora só pra pedir um novo. Um brinquedo velhinho que ninguém mais gostasse, um carrinho; um violãozinho; se encontrasse até mesmo uma boneca ficaria feliz; raspar-lhe-ia a cabeça e a pintaria para guerra. Transformaria em soldado. Tal como a vida lhe fez.

- Vo acha um brinquedo hoje, ocês vão vê!
- Cala a boca e fuça, Malaquias – respondiam os capitães.

E foi o que ele fez. Fuçou aqui, ali e acolá. Ficava bravo com o sarro que lhe tiravam os mais velhos; chamavam-lhe de crianção; Malaquias sabia que qualquer um deles daria a alma por um brinquedo de natal. Mas não davam o braço a torcer, achavam-se homem feito. Queriam achar revista de mulher pelada. Malaquias também queria, mas naquela noite ele sabia o que ia achar. Ele acharia um brinquedo. Não mostraria a ninguém; o teria só para si, e só para o brinquedo seus olhos trabalhavam.
O resto do grupo começava a abandonar o lixão pouco a pouco. Onze da noite se aproximava, e Malaquias não pensava em parar. Continuou até que todos se foram, continuou quando seu único meio era o tato, continuou como quem sabia.
Era quase meia noite, Malaquias começava a sentir mais pesado seu corpo; mais dolorido seu braço; maior sua cabeça; até que, dentro de um saco, avistou algo brilhante, muito brilhante; Malaquias o rasgou com a força que lhe restava, e encontrou dentro deste um segundo saco, um saco menor; dentro deste, um pó luminoso; azul, lindo, iluminava sua face. Malaquias apertou-o contra o peito em sinal de satisfação. Era um presente de Deus, uma recompensa. Malaquias o fitou por muito tempo, estático; deu-se conta de há quanto tempo estava ali; enfiou o presente no bolso, e correu feliz e saltitante de volta pra casa.


2
Sirius Technology – Tecnologia em harmonia com o meio ambiente.

A Sirius Technology ostentava sempre um slogan tranqüilizador à humanidade, que tem o costume de acreditar que a evolução tecnológica pode ocorrer sem destruir nosso planeta. Claro, a tecnologia em si não é o sujeito de tal destruição. Porém, o capital que gira em torno da citada evolução, comumente – para não dizer sempre – age em prol somente de seu ímpeto crescente de acumulo de si mesmo.
A citada organização teve sua falência declarada durante um projeto intitulado At. 55; uma analogia ao numero atômico do elemento químico em ênfase na experiência. Elemento químico este, que contém radioatividade demais para ser considerado harmônico à natureza.
Uma grande equipe estava encarregada da pesquisa e aplicação prática do projeto, que para simplificar: era voltada a área da medicina; mais especificamente as maquinas de raios x. Agora, para complicar: entendem-se os raios x como uma radiação eletromagnética de comprimento de onda compreendido, aproximadamente entre dez elevado a oitava potência e dez elevado a décima primeira potência centímetros. Tal informação cabe aqui, como forma de explicitar o caráter do projeto, que em suma, pretendia diminuir ainda mais o comprimento da dita onda, para fins que para ser bem sincero... Nem muitos dos que ali trabalhavam compreendiam completamente
A empresa era dirigida por diversos acionistas – para não dizer “testas de ferro” -; no entanto, um homem era o “big boss”, o chefão, o maioral máximo, o rei da cocada preta... Esse, não era outro senão: Mike Wallace, um gringo sacana que via no terceiro mundo mão de obra barata e leis flexíveis.
Wallace além de milionário, era um jogador inveterado – e azarado – que acabou por perder tudo que tinha – investido somente nesta empresa sediada no Brasil, claro – jogando, cheirando, bebendo e transando em cassinos pelo mundo. Para ele fechar esta empresa significou tão pouco e somente migrar para outro negócio. Declarou falência; fechou as portas; mandou todos embora, e livrou-se do lixo que havia acumulado com o último projeto.
Caso estivesse em sua terra natal, teria encontrado empecilhos terríveis para sumir com tanto material tóxico e radioativo. Foi por isso porém, que Mike escolheu o Brasil para fundar a Sirius Technology. Leis flexíveis – para não dizer corruptíveis.

***

- Tudo que quiser meu caro Wallace!
Este é o prefeito da cidade. Sujeito ambicioso. Vende a mãe para o diabo se a oferta for boa. Está em seu segundo mandato; não por competência, mas a população não comparece as urnas. Não tem nada que a justiça eleitoral possa restringir-lhes que interessa diretamente a sua existência. O prefeito acha ótimo.
De fato, como visto no início, o prefeito estava disposto a dar a Wallace qualquer coisa que lhe fosse pedido – pelo dinheiro que lhe foi oferecido, até o que você de mente mais perversa ousou pensar. O pedido desta vez foi simples; não caberia ao prefeito gastar nada; apenas burlar algumas leis que, diga-se de passagem, não existem em Recanto dos Malvinos.
O nome da cidade provém da primeira família a aqui instalar-se. Os Malvinos. O patriarca da família René Malvino era um homem decidido, determinado. Não existia nada por aqui antes dele; nada além de mato, pasto e montanhas. Ele praticamente construiu a cidade. Tudo quanto se pode imaginar veio a partir de sua chegada. Cultivou gado e café durante muito tempo; escravizou, matou; abusou como um rei; até parecia um pressagio do que a cidade se transformaria duzentos e quatro anos depois. Foi com esta autoridade, como patrono da cidade, que a batizou com o nome de sua família; o recanto de sua família; o Recanto dos Malvinos.
Com o passar dos tempos à cidade se transformou a escravidão e tantas outras iniqüidades do passado, deram lugar a uma nova modalidade de desgraça: Drogas; corrupção; prostituição... Tudo quanto um centro econômico tem direito. É por isso, que atualmente a cidade é popularmente conhecida – ou rebatizada, se preferir – como: Recanto dos Malditos.
Mas, voltemos ao prefeito. O pedido de Mike Wallace era simples: “Tenho uma empresa cheia de resíduos tóxicos e radioativos dos quais não quero enfrentar meios legais para me desvencilhar. Quero que o ilustre senhor prefeito de um jeito de desaparecer com essa ‘porcalhada’ enquanto viajo para Vegas.” Claro, Wallace estava disposto a pagar o quanto fosse necessário. E o prefeito estava disposto a fazer o que fosse para ter o que lhe era necessário.
Foi assim, que o prefeito matou “dois coelhos com uma só cajadada”. Tendo alguns dias depois, uma nota emitida nos jornais da cidade, que frisava de forma “aplausiva” a eloqüente fala do ilustre prefeito Chagas:

“Recanto dos Malvinos necessita de um saneamento básico de qualidade. Por isso, a prefeitura não mediu esforços para obtenção do antigo terreno das empresas Sirius Technology para construção de nosso maior e mais bem elaborado aterro sanitário. Ou como popularmente costumamos chamar: O Lixão.”
3
Não muitos dias passaram e Malaquias foi acometido por uma moléstia sem explicação. Explicação diagnóstica no entanto, era algo difícil de encontrar-se em Recanto dos Malvinos, uma vez que: o posto de saúde tinha fila de meses para atendimento; o pronto socorro tinha um único clínico geral que, geralmente não clinicava nada; o hospital particular era para os ricos, e uma frieza supra-humana atingia seus diretores sempre que uma mãe desamparada rogava-lhes por ajuda desesperada. Desta forma, encontrar um motivo – ou às mentes mais crédulas, uma solução – para o inchaço deformativo que afligira as mãos, barriga e rosto de Malaquias era uma utopia. Mais que isso. Era uma impossibilidade.


4
No morro do Remendão como em toda comunidade de baixa renda, existia uma boa alma disposta a resolver os problemas de todos. Ou ao menos tentar. Essa alma não se via em outra senão em Cora.
Cora vinha de uma família bem de vida, se colocada em relação às famílias ali residentes. O pai advogava e a mãe lecionava. Em suma não tinha porque estar ali; mas estava. Tinha diploma de enfermagem; formação acadêmica de nível; porém, afligia-se demasiadamente com o sofrimento alheio. Daí a inclinação à medicina.
Há tempos vinha ela estudando uma estranha pré-disposição dos moradores do morro ao desenvolvimento de diversos tipos de cânceres. Era câncer de boca, de intestino, de cabeça, de pulmão e tudo quanto se pode imaginar nesse âmbito canceroso. Estranho no entanto, é que muitos – para não dizer a maioria – desenvolviam a doença sem pertencer a um grupo de risco. Ou seja, fumantes; alcoólatras; viciados e etc. Pior ainda, a maior parte das pessoas que desenvolviam a doença pertencia aos que menos deveriam se afligir com ela. As crianças.
Cora visitava o morro duas vezes por semana. Terças e Sábados. Passava das quatro da tarde do inicio da penúltima semana do ano, e ela aproximava-se da casa de Seu Nhô; um senhor de oitenta anos que sofria de diabetes e necessitava dos cuidados e carinho da tão aclamada e amável Dra. Cora – como era conhecida. O sol ainda brilhava impiedoso e Cora desfilava confiante com sua maleta e o estetoscópio pendurado ao pescoço. Falei do sol, porque este reluzia como um brilhante nos cabelos cor de mel de nossa Dra. Que andava com a cabeça longe quando foi trazida pra perto por um grito agoniado.

- Dra. Cora, acuda! – Brandiu dona Adelaide, mãe de Malaquias. Que ao Ver a Dra. passando frente a seu barraco correu buscá-la em auxílio. – A Sra. Tem que ampara meu menino, Dra. É Malaquias! Tá molestiado, e eu tenho pra mim que é peste.

Cora foi rápido ao barraco em encontro do enfermo, que jazia na cama contorcendo-se de dor. A cena com a qual se deparou ao entrar no quarto botou horror em seus olhos já tão acostumados a mazelas. O inchaço havia progredido; os braços e pernas incharam até que tronco e membros tornaram-se uma coisa só. A cabeça sobressaia sem pescoço. A Dra. Tentou segurar mas não pode conter a ânsia; Malaquias pouco a pouco; transformava-se num naco de carne viva. Um naco que grita. Encarniçado.
Cora soluçou baixinho um choro contido. Afagou a Malaquias; abraçou dona Adelaide. E se entregou a lágrima.

5
23:30 h da quinta feira 24 de dezembro, foi confirmado o óbito de Malaquias. Morreu em sua própria residência, após uma parada cardíaca ocorrida em função de sua mutação corporal.
Dra. Cora que havia lhe efetuado a primeira visita na terça feira passada; não mediu esforços na intenção de descobrir o que poderia ter causado tal deformação ao menino. Naquele mesmo dia, retirou uma amostra da epiderme monstruosa que se aflorava em Malaquias, e correu ao encontro de Dr. Maurício.
Dr. Maurício tinha formação em dermatologia e havia sido um dos professores universitários responsáveis pela formação de Cora. Era na certa o profissional mais indicado para apontar uma direção na solução do caso Malaquias.

- Estranho! – exclamou o Dr. Enquanto examinava a amostra de pele através de um microscópio – Quase peculiar, diria eu. – Isso aconteceu logicamente antes da dita morte.

Maurício dirigiu-se a um enorme estante à direita da mesa onde efetuara a análise. Correu o indicador por uma fileira de livros de capa vermelha com letras douradas grifadas à lateral; estancou em uma edição e inclinou-a para queda em suas mãos. Abriu quase que na página exata a qual procurava; voltou duas e remeteu uma.

- Cora, querida. – Esclarece Maurício enquanto percorre os olhos pelo livro - Posso estar precipitando-me... Mas sinceramente nunca encontrei epiderme com tal característica; senão esta:

O Dr. Entregou o livro ao colo de Cora; que se encontrava sentada na poltrona frente à mesa de Maurício. Indicou o trecho ao qual se referia; Cora leu; objetou:

- Mas isso é impossível!
- Todos os parâmetros apontam para esta hipótese. É a mais coerente; por mais ilógico que pareça. Não posso deduzir nada mais a partir somente desta amostra; mas pelo que você me expôs quanto ao estado atual da criança... Posso praticamente afirmar que não me restam dúvidas. Gostaria de visitar o enfermo!
- Claro – assentiu Cora.
- Agora!
**
Maurício transparecia uma frieza total enquanto examinava Malaquias. O relógio aproximava das nove da noite. Às costas do Dr. encontravam-se Cora e Dona Adelaide, que atentavam apreensivas o decorrer da consulta.

- A senhora percebeu alguma alteração no comportamento da criança antes da manifestação da enfermidade? – indagou Maurício.
- Não, Sr. Dr.. Malaquias tava mais feliz que nunca uns dia atrás.
- Mais feliz que o normal?
- É... Mas tenho pra mim que havia de ser pela chegada breve do natal.
- E o que Malaquias ia ganhar de natal?
- Ora, Dr.; aqui em casa num tem presente de natal não. Sou mãe solteira. Num temo condição dessas coisa não.
- Onde ele costumava passar os dias?
- No lixão. Tudo as criança da comunidade catam por lá.
- Lixão é... – Dr. Maurício coçou o queixo ao mesmo tempo em que apontava uma lanterna às pupilas de Malaquias – Interessante!

**

Quarta feira, oito da manhã no caminho ao lixão.

- O que você conseguiu deduzir da conversa de ontem , Cora? – Interrogou Maurício à passageira ao mesmo tempo em que dirigia sua pick up ranger.
- Como assim? Além de que provavelmente não tenhamos chance de salvá-lo?
- Não! Em relação ao natal!
- Bem... Deduzi que não se ganha presente na casa de dona Adelaide.
- Exato! E o que uma criança faz quando não tem brinquedos nem tem perspectiva de ganhá-los?
- Nem imagino... – Cora deu de ombros em sentido interrogativo.
- Ela os acha.

A pick up adentrou a área do lixão e estancou próximo a um grupo de crianças que ali trabalhavam. Maurício e Cora saltaram e caminharam na direção dos catadores.

- Onde você que chegar com isso Dr.
- Você verá – Maurício acenou a um dos garotos – Hei, você, por favor...

O garoto aproximou-se
- Qual seu nome menino?
- Tadeu!
- Tadeu, você conhece Malaquias?
- Conheço sim Sr.
- Você sabe me dizer qual foi a última vez que o viu e o que ele estava procurando aqui no lixão.
- Faz tempo que Malaquias num aparece por aqui Seu moço. Mas ele procurava o que sempre procurava... Ele dizia que ia achar um brinquedo.

Dr. Maurício olhou com olhar conclusivo para Cora, que lhe arregalou os olhos em espanto da cognição perfeita do professor.

- Uma última pergunta. Onde ele costumava “catar”?
- No lado de lá da cerca. Mas ninguém consegue fica lá muito tempo... Dói os miolo.
- Obrigado, garoto – Maurício tirou um pirulito do bolso da camisa e presenteou Tadeu, que voltou saltitante com o pirulito na boca de volta ao seu monte de lixo.
- Como o Sr. Sabia disso? Do brinquedo!?
- Ele é uma criança, Cora. Depois que mata a fome... Tenta matar a dor. Vamos lá. Vamos ver o que se passa do outro lado da cerca.

Maurício fez “escadinha” com as mãos para Cora. Em seguida num salto ágil ergue-se na cerca e a transpôs. Tirou então do bolso da calça um aparelho semelhante a uma calculadora científica.

- O que é isso Dr.? – indagou Cora.
- É um Lutron EMF-823!
- E o que quer dizer isso?
- É um medidor de campo eletromagnético portátil!
- Um medidor de Radiação?
- Exato!


6
Walter repousava tranqüilo em sua residência. Comia um cereal com leite ao mesmo tempo em que assistia um documentário sobre a ilha de Galápagos.
Walter lecionava física na mesma unidade acadêmica onde Dr. Maurício lecionava. Mantinha inclusive um estreito laço de amizade com o colega. E foi devida a essa “estreitura lacional” que o telefone de Walter tocou neste momento:

- Alô – Indagou Walter ao telefone.
- Walter?! É Maurício! Preciso me encontrar com você! Surgiu uma coisa...
- Ok! Quando?
- Agora, Walter. Tem de ser AGORA!

7
- Deus do céu!

Este é Walter ao analisar a medição retirada do campo do lixão por Dr. Maurício e Cora.
Estava agora na casa de dona Adelaide; onde diversos vizinhos encontravam-se também. Muitos por curiosidade; alguns por amparo.

- Como isso é possível? Num nível de radiação desta intensidade teríamos muitos outros quadros de enfermidades diversas. Mas dificilmente ocorreria uma deformação dessa magnitude sem um contato direto com a substância.
- Quadros nós temos, professor. – declarou Cora – Venho estudando há algum tempo uma estranha onda de cânceres que vem afligindo a comunidade.
- Mas como isso foi parar no lixão? Digo, esse material radioativo?!

Foi a Sirius. – ouviu-se uma voz tremula partida do meio dos vizinhos que ocupavam o quarto de Malaquias.

- O quê? – inquiriu Cora.

Seu Nhô surgiu por entre o meio dos vizinhos apoiando-se trêmulo em sua bengala, e uma mão amparando as próprias costas.

- Eu me lembro. Faz alguns anos. Quando a Sirius faliu, a prefeitura fez o lixão na onde era a empresa. Eu lembro de um bando de manifestante que apareceram por essas banda uma vez, falando desse treco ai que ocês tão falando de rádio atividade. Ninguém sabia que esse troço fazia mal. Mas os policia botaram tudo pra corre em dois tempo.

- Isso explica grande parte dos quadros – assentiu Dr. Maurício – Mas não explica o que aconteceu a Malaquias.
- Malaquias tem um melhor amigo – Lembrou Cora – Vamos a ele!

E assim, foram atrás de Julinho.



8
Era noite no morro do Remendão. O frio “cortava” com o vento forte que serpenteava pelos corredores e ruas do morro. Um acordo de toque de recolher tácito vigorava, de forma que ninguém ousava sair nas ruas após o sol se pôr.
Isso no entanto, pode ser considerada uma dupla mentira. Uma vez que Julinho vagava sorrateiro junto a Malaquias; que o havia dito que encontrara uma fábrica de doces abandonada e estava disposto a dividir as iguarias com o amigo.
Uma grande patranha, já que na verdade o intuito real de Malaquias era pregar-lhe uma peça. Dar-lhe um susto. Desta forma, quando chegaram à viela sete:

- Julinho, Espera aqui que eu vou entra na viela pra pega a chave da corrente da fábrica.

Julinho aguardou por cerca de dez minutos. Quando finalmente se fartou da espera, adentrou a viela em busca de Malaquias.

- Malaquias?! – ciciou com força na voz – Que quê tá demorando?
- Só mais um pouco – respondeu uma voz um tanto distante.

Foi neste momento então que das sombras surgiu um ser que em forma lembrava muito Malaquias. Porém, brilhava num azul. Brilhava como se fosse um espírito.

- Julinho, eu vim lhe buscar – exclamou o “espírito azul” tartamudeando a voz.
- Crê em Deus pai todo poderoso! – rogou a si mesmo Julinho ao mesmo tempo em que saia na disparada do pinote só.

Malaquias limpou da face o pó branco que o fazia reluzir em azul, e caiu numa gargalhada abafada vendo Julinho ao longe e ainda correndo.

- Êta Moleque cagão – E seguiu na volta rumo a sua casa limpando o resto de pó que ainda lhe brilhava pelo corpo, e rindo sozinho da peripécia que pregara.



9
Césio - do latim "caesium" , que significa "ceu azul". Neste caso: cloreto de césio-137. Uma substância que se parece demasiadamente com sal de cozinha. Porém no escuro brilha com uma coloração azul.

Explicava o Prof. Walter a uma classe de dois alunos: Cora e Dr. Maurício.

- Existe cura? – Indagou Cora.
- Somente aos que ainda não desenvolveram uma doença culminante da exposição.Um quelante denominado “azul da Prússia”. Vai eliminar a radiação através das fezes e urina.
- Os outros...
- Não podemos salvar Malaquias!
- Será necessário algum procedimento especial com o corpo? Perscruta Maurício.
- Ele terá de ser cremado. E desde já isolado.

Dra. Cora levou as mãos ao rosto em sinal de angústia. Dr. Maurício mantinha-se composto; mas transparecia uma exaustão enorme pela compressão de seus sentimentos. Neste momento, a porta é aberta bruscamente. É Josué. O dono do morro.

- Eu tava de butuca ouvindo o que cêis falaro. Fui atrás de sabe. Descobri que a culpa de tudo isso... Dessa desgraça toda que se dá no lixão, tem um único pai: É o desgraçado do prefeito Chagas. Que num desinfeto a área pra construi o aterro.
“Se prepara! Que o bicho tá fudido!”

Os três doutores olharam-se indagativos.

Fudido como?


10
“Vai desce o morro inteiro!”

Dizia Josué aos acólitos que ali aguardavam por ordens de seu Deus.

- Quero que prepare todo mundo. Nóis vamo em procissão até a prefeitura amanhã. E vamo pega aquele filho da puta.
- Mais amanhã é natal, Josué – intrometeu-se Zé preto.
- Que se foda! Vamo dá uma salva de fogos que ninguém vai esquecer então...
- E se acha que o prefeito vai tá na prefeitura na noite de natal? – disse em tom jocoso.
- Avisa o povo. Do resto deixa aqui. Que tu vai vê se vai tá ou não.

O processo de intimação começou então. De barraco em barraco, a notícia da procissão era divulgada, e de boca em boca era repassada de forma que em pouquíssimo tempo, o morro inteiro estava sabendo. Mais que isso, estava comprometido. Não era um convite à participação.
Josué armava então a arapuca para levar o prefeito à prefeitura em plena noite de natal.
Estava em um orelhão, acompanhado de Zé preto.
- Se liga, Zé preto... Esse prefeito é mó cheirador que eu to ligado! Ele compra direto do Bolívia. Que vê como ele aparece na prefeitura no natal!?

Josué discou o numero de celular do prefeito. Ele tinha a maioria dos telefones importantes da cidade em uma agenda de capa vermelha à qual chamava: “Bíblia do Diabo”. Talvez porque a maior parte das vezes que a utilizava, um quarto era ocupado no inferno.

- Alô – ouviu Josué, partido do fone.
- Chagas?! Ligação da parte do Bolívia.
- Diga rápido! Estamos num celular.
- O chefe resolveu presentear o cliente mais ilustre da cidade. Tem uma cota extra ai pro´cê .
- Ow! Maravilha...
- Ele te quer na prefeitura amanhã as dez.
- Da noite?
- Lógico, caralho!
- Mas é natal, porra!
- O presente é de natal... Vai desaponta o homen?
- Não... Não! Tá marcado então.
O telefone foi desligado e Josué voltou-se triunfante à Zé preto.

- Falei, preto. Esses viciado de merda é tudo igual... Quando o nariz fala; a cabeça cala.

E partiram rindo; gargalhando.

11
20:30 h. Uma multidão encontrava-se no campo de futebol do morro, portando armas que lhes cabiam: inchadas; facões; tochas... Os acólitos de Josué distribuíam coquetéis molotov e isqueiros a todos. Num palanque improvisado sobre caixotes de laranja, Josué discursava inflamado ao seu povo:

- (...) Tamo sendo morto. Tudo nóis aqui conhece alguém que morreu de doença sem explicação. Nossas criança tão sendo morta. E o matador tem nome: É o prefeito Chagas. Aquele filho da puta.

Um urro desumano surgia na multidão, que levantava as armas em sinal de comunhão a opinião a cada pausa da fala de Josué.

- Hoje nóis vai desce o morro! Hoje nóis vai vinga nossas criança afligida pela incompetência desse corrupto maldito.

Na multidão, mães choravam; pais seguravam o choro e transmutavam-no em gritos de guerra. Trovões.

- Hoje é o dia do povo. O dia do povo mostra que tá do lado do povo. Nóis somo gente. Nóis somo a maioria. E a maioria é que é gente. Esses pilantra que rouba nóis é minoria. E essa minoria num é gente. É monstro.

“E monstro. Se caça! Mata! E come!”

O povo vibrava. A raiva parecia querer pular pra fora, essa contenção gerava um trêmulo ardor nos corpos de todos e ali não se viam mais indivíduos; tornaram-se uma só coisa; uma só maquina. Uma só arma. Um motor movido a ódio que bombeava fumaça pelas ventas. A mesma fumaça que tossiam calados, era agora o combustível de seus músculos. A falta virou força.
Partiram assim numa marcha insana, desceram o morro como um exército romano. E o calor que fluía de suas almas, alimentava suas tochas.


12
Polícia foi incapaz de conter a procissão. Em pouco, chegaram à prefeitura; o prefeito refugiou-se em seu gabinete. Tochas e coquetéis explosivos foram lançados. Pouco a pouco a prefeitura tornava-se uma Roma miniatura frente a seus Nero`s.
As autoridades assistiam impotentes. Atordoadas. Nada pôde ser feito. A fúria do povo era infrene. As armas foram baixadas, e toda cidade veio assistir aquele teatro da destruição.
A prefeitura era uma embarcação naufragando pelas mãos de quem a forjou. Seu capitão, o prefeito, não pareceu oferecer resistência ao naufrágio. E como dita os costumes navais... Afundou com seu navio.
Os espectadores assistiram em silêncio que agora cabia ao momento o ruir de um dos três poderes. Não sobrou nada do que antes foi o prédio central da cidade. Repórteres e equipes de jornalismo cobriam o fato e todos pareciam não acreditar. Porém, ninguém duvidava. Não mais... Não duvidavam do povo. E de seu poder.
Na manhã seguinte. O ponto central da questão não era, porém, a perda arquitetônica. Todos se perguntavam por que o prefeito não manifestou nenhuma atitude “migratória” para além das chamas. Porque simplesmente aceitou a morte?!
Uma nota marcava a ocasião numa foto estarrecedora da prefeitura em chamas, e centenas de pessoas assistindo vislumbradas ao espetáculo. Na primeira página do principal jornal da cidade, a nota dizia:

“Por quê?”.



O MERCADOR DE ANJOS


1
Barracas sem fim estendiam-se pela Alameda naquela tarde quente de quermesse. Crianças seguradas à mão por seus pais e mães saracoteavam na fila do brinquedo mais disputado do parque de diversões; a roda gigante. Tão aguardada era sua chegada que a criançada parecia fora de si ao vê-la girando alto e voltando baixo; esplêndida e magnânima; única.
O sorriso ocupava todos os rostos; adultos e infantis. As crianças faziam sua prosa incoerente e displicente, enquanto os “velhos” colocavam em dia a conversa que só via parâmetros de execução em momentos públicos.
É nesta fila de bilheteria onde encontraremos Sara. Uma garotinha de sete anos, ruiva; olhos azuis como o céu; charmosas sardas que lhe ocupavam as maças davam-lhe o ar peralta das crianças inteligentes.
Segurada por seu pai – Ari – pela mão, enrolava-o em seu próprio braço enquanto girava e olhava para todos os lados da fila. Ari não a largava por nada; hora em vez dava um 360° para acompanhar a curiosidade da filha que parecia maior que a própria roda gigante.

- Falta muito, papai?
- Cinco minutos!
- Quanto é cinco minutos?

Ari apontou-lhe um grande relógio de ponteiro que pendia a torre da igreja.

- Quando aquele ponteiro grandão sair dali, andar aqueles cinco pontinhos... E chegar ali! Vai ter dado cinco minutos.

Sara calou em conformismo desentendido. Mas não tirou os olhos do ponteiro.

Cinco pontinhos – ou quase isso - mais tarde... Sara finalmente tinha em mãos o bilhete da roda gigante. E agora, encarava a segunda fila.

- E agora papai? Falta quanto?
- Acho que mais ou menos a mesma coisa que faltava na fila do bilhete.


Sara mais uma vez não entendeu direito o que o pai quis dizer, mas colocou-se a olhar para o relógio novamente. O pai voltou-lhe um olhar de satisfação; como de quem sabe que ambos estão fingindo: ela que entendeu; ele que tinha razão quanto ao tempo.
Finalmente Sara estava na cadeirinha da roda. Seu pai não lhe acompanhou; não desta vez, pois tinha pavor de altura; mas confiava plenamente na segurança do brinquedo. Uma tarde tão linda e tranqüila, seria incapaz de ser palco de uma tragédia de qualquer gênero. Tal pensamento vinha como absolvição a sua covardia.
A entrada da roda gigante era pelo sul, e a saída pelo norte. Uma grade separava as crianças que ainda iam entrar das que iam sair; Ari estava já no norte. Aguardava, tentando ultrapassar uma horda de pais mais rápidos que ali esperavam por seus filhos.
Um homem enorme vestindo camisa regata e calça jeans, manuseava a alavanca de freio do brinquedo. Era ele também que cronômetrava o tempo de diversão de cada um. Desta forma, a toda hora a roda dava uma parada; as crianças que estancavam no topo gritavam num medo extasiado e feliz.
Ele puxou a alavanca e o brinquedo não parou.

“Que é isso?” “Para essa merda” “Jesus” “Deus” “Nossa Senhora”

Surgiu das bocas dos pais desesperados que começaram a chacoalhar a grade; a pular; a gritar... Ari começou a ser passado pra trás, mirrado e fraco que era.

- Calma, Gente – Rogou o grandalhão da alavanca – Já vai parar...

Era tarde. Os pais já estavam em pânico, e esse pânico foi transmitido às crianças:

“Papai” “Mamãe” “Socorro” “Haaaaaa” “Huuuuuuu”

A roda finalmente voltou a funcionar, depois que o grandalhão mexeu alheio e incompetentemente em alguns controles elétricos. Nessa hora, os pais invadiram aquela área e resgatavam seus filhos a cada parada da roda. Ari esforçava-se, mas não conseguia ultrapassar a grade; os pais maiores e mais fortes pareciam ter se multiplicado a sua frente. Pouco a pouco ele via a cadeira de Sara aproximar-se do solo e não estava nem perto de estar a seu encontro.

- Sara, espere o papai. – Gritava ao mesmo tempo em que tentava transpor o pânico alheio a sua frente.
- Papai... Papai...

Sara finalmente desembarcou. Ari a viu ser tirada da cadeirinha e colocada no chão pelo grandalhão. Nesse momento uma força sobre-humana invadiu seu ser. Jogou todos a sua frente pras tabelas.

- Sara?! Sara?!

A resposta cessou. Um frio percorreu a espinha de Ari ao chegar ao lado do grandalhão e não encontrar sua filha.

- Cadê minha filha?
- Quem é sua filha, senhor? – Perguntou-lhe o grandalhão numa torrente de pressa e desespero em retirar as crianças causando o menor alarde possível.
- Uma ruivinha... De sardas...
- Senhor, eu devo descarregar uma mil ruivinhas de sardas por dia.

Ari correu desesperado pelos arredores da roda gigante chamando: “Sara? Sara?” Não havia resposta. Uma angústia misturada de um tremor tomou sua percepção, e logo, o tempo estava cinza e frio.
Passou o resto do dia correndo; gritando; limpando o suor e as lágrimas em seu rosto. Aos poucos a quermesse esvaziou-se. Somente Ari restou na rua. Chamando agora sem voz:

Sara?

Sara?

Sara?

...

2
A televisão gritava um jogo de futebol de times que ninguém se importa. À sua frente, uma poltrona suja e rasgada ostentava um dorminhoco bêbado que ainda segurava ancorada na barriga a cerveja em long neck que não acabara de beber. Um gol. E ele desperta. Cambaleante levanta e segue à cozinha.
A geladeira modelo anos oitenta, disposta ao lado de um armário embutido, nada tem a ver com estilo, mas sim, com falta de renovação. Pratos e panelas por lavar pesam na pia; baratas correm tontas com a chegada do “inseto” predominante da casa. Cruzando a cozinha ele segue à porta que dá no quintal dos fundos. O atravessa e chega a uma lavanderia externa.
A porta a qual ele abre dá vista a uma escada. Subindo-a ancorando-se no corrimão, a tosse que vaza de seu diafragma é o som que há dias atemoriza o ocupante do quarto do sótão. Ou melhor, a ocupante.


3
No ano de 2000, formei-me em letras pela universidade de São Paulo e logo parti para um curso obrigatório exigido aos que pretendem ingressar no rumo jornalístico. Terminados meus estudos, fui designada pelo jornal o qual ministrava o curso a uma função na redação; revisora... Nem preciso dizer que essa não era minha ambição, porém, estando dentro da redação não tardaria que meus talentos fossem reconhecidos pelos editores. Imaginava eu.

“OLGA!?”

Ouço eu ao mesmo tempo em que corrigia um texto mau feito de um dos repórteres. Eles são incapazes de concordar alguma coisa na vida real, que dirá então nos verbos. Quem me chamava, no entanto era meu editor. Um chato.

- Olga, você revisou a matéria sobre as baixada santista na edição de ontem?
- Claro que revisei, chefe!
- Então leia este trecho!

Ele indicou-me o parágrafo que li em voz para que ele ouvisse também:

“As autoridades nada dizem sobre as más condições do litoral paulista. A defesa civil omitiu-se quanto à necessidade de interdição, e frisam que em ‘CUTABÃO’...”

Putz... Como deixei passar isso? O chefe estava espumando.

- Cutabão, Olga!? Não seria Cubatão?
- Bem... Sim... Claro... Mas o senhor sabe né... Às vezes...
- Não quero ouvir nada, Olga. – Gritou ele, com o indicador quase enfiado no meu nariz - Mas fique sabendo que da próxima vez, coloco você pra revisar horóscopo, entendeu?
- Perfeitamente, chefe!
- Pois bem... – E partiu em seu andar de ganso.

Tenho andado com a cabeça tão nas nuvens que realmente não venho me concentrando. Pra ser sincera... Odeio esse trabalho. Meu talento vai além de ficar corrigindo esses incompetentes; incapazes de montar uma narrativa coerente; puxa sacos. Nunca peguei um texto no qual não tive de corrigir erros grotescos: “Na casas da mulher...” “O brasil eram para nós um aliado dos eua...” Já corrigi até Moscou com “Z”; guerra fria vira guerra “feia”; a incapacidade de abrir parágrafos então... Parece uma epidemia... Droga! Lá vem o Julius; com toda certeza vou aumentar as pérolas de meu livro de abusos gramaticais; caso estivesse escrevendo um.

- Olga – dirigi-se ele com aquele ar de superioridade enfadonho - O chefe mandou que eu passasse este texto por você antes de publicar. Mas tenho certeza que...
- Tá, tá, tá... – Interrompo-o antes que ele comece a se gabar do talento literário e ortográfico que ele acha que tem. – Reviso assim que acabar o texto do Léo.
- Beleza, gatinha. – E partiu, não antes de me dar uma piscadela com aquele ridículo ajeitar de dedos em forma de pistola que atira pelo canto da boca. Babaca.

Olhei o titulo da matéria de relance, mas rapidamente voltei minha cabeça e atenção novamente para ele:

“Sumiu mais uma”

Comecei a ler as primeiras linhas e elas descreviam:

“Mais uma criança desaparece misteriosamente. O fato desta vez se deu num parque de diversões de quermesse no bairro de...”

Não precisei ler muito para ver que o Julius não estava dando a menor importância para aquela pauta. Só expunha os fatos de forma desinteressada e omissa. As palavras do pai da menina me chocaram; pelo menos nisso Julius era bom: transcrever o que os outros falam. E esta, estava cheia de dor e remorso. Realmente me comoveu. O fim do texto vinha expondo que aquela era a vigésima terceira criança a desaparecer em Recanto dos Malvinos. A policia não tinha nenhuma pista. E nenhuma das crianças foi recuperada. Essa era uma matéria digna de prêmio; caso, é claro, fosse escrita por alguém competente.
Alguém como eu.


4
Hora em vez um rato cruzava a frente da jaula onde se encontrava Sara. Aquela altura, não mais a incomodavam; uma vez que o único ser humano com o qual vinha mantendo contato era incontestavelmente mais sujo que os efêmeros roedores.
Tais roedores, no entanto, não lhe surgiam à vista; já que a penumbra ocupava cada centímetro daquele cômodo. Sara tinha a disposição em seu cárcere, uma tigela de água e uma de comida; exatamente como um cachorro, debruçava-se para alimentar-se e matar a sede.
Uma luz invade crescente o ambiente. A visão desacostumada de Sara pena alguns instantes para reconhecer a fonte da iluminação: A porta; uma sombra projeta-se. Uma voz invade o silêncio:

O diabo está chegando, querida!


5
Iniciei uma pesquisa. Busquei na redação todas as matérias anteriores sobre desaparecimentos infantis no último ano. Descobri uma coisa curiosa: Todos se davam nos arredores do parque Pignatari. As faixas etárias das desaparecidas também eram coincidentes; entre seis e oito anos. Disse “das” desaparecidas pela presença de uma outra coincidência: todas do sexo feminino. Uma coisa esquisita, é que os desaparecimentos guardam entre um e outro uma latência de no mínimo um mês. Um assassinato não demoraria tanto. Tão pouco, um assassino em série teria tanta paciência e desenvoltura na intenção de deixar a poeira baixar – A não ser é claro num filme holliwoodiano, estrelado por algum super astro e dirigido por algum gênio da cinematografia – E isso, me leva a pensar que se trata de algo pior. Algo que inclui muito mais sofrimento que a morte, e leva muito mais tempo.

6
O “diabo” gosta de lambuzar-se com crianças. Sara gritaria, caso sua boca não houvesse sido tapada com inúmeras voltas de fita adesiva ao redor de sua cabeça. O “diabo” a penetrava evocando cantos profanos que soavam incompreensíveis perante sua inocência. Sara era ainda um anjo. E o “diabo” cantava ao seu ouvido; suas estrofes eram marcadas por uma língua de lagarto; fria; pontiaguda. Seu corpo fervia como o inferno. Sara não sentia mais dor; não sentia mais raiva; não sentia mais fé. Sentia somente a inércia de sentimentos de quem é atirado numa realidade incompreensível. Num limiar entre vida e morte, um chafariz de água fria partia das mãos do carcereiro; era importante que ficasse acordada. O “diabo” queria que ela ouvisse; que ouvisse os cantos profanos que marcariam daquele momento em diante o excedente de sua vida.


7
Parti de um raciocínio lógico. Um raciocínio que qualquer investigador policial com certeza domina infinitamente melhor que eu. Os desaparecimentos dão-se singularmente próximos; e demasiadamente rápidos; a luz do dia; a repetição de perímetro só pode culminar numa lógica: as crianças não poderiam estar sendo levadas para longe. Mas não se preocuparam em desenvolver tal raciocínio. São desaparecimentos sem explicação; e não se cobra propina em desaparecimentos. São pais e mães desesperados que ligam de meia em meia hora para a delegacia. É publicidade negativa. Os contras superam os prós, e tudo se transforma em estatística. Não querem encontrar ninguém, pois se quisessem...Teriam feito. Feito em todos os casos. Mas bem se sabe: todos sabem onde estão os traficantes; onde estão os desmanches; onde estão os corpos... Todos sabem. E principalmente as autoridades podem fazer melhor. Fazer como eu; que partindo de um raciocínio lógico de triangulação da informação, encontrei o local do cárcere. Mas o problema jamais foi saber. O conhecimento não implica na vontade, e somente seu contrario é aplicável no plano prático. Levei dois dias... Talvez já seja tarde.



8
Desacordada Sara encontrava-se jogada no canto da sala. O “diabo” lava as mãos ao mesmo tempo em que se dirigi ao carcereiro:

- Quando parte?
- Esta noite!
- Pra onde?
- Nem imagino...
- Já depositaram?
- Já... Só falta sua parte. E esse trampo “sobe”...

O diabo atirou um chumaço de notas no chão frente ao carcereiro. Olhou uma última vez para Sara, e seguiu rumo a porta.

- Limpe tudo! Como sempre. Não deixe vestígio nenhum do meu envolvimento e...
- Relaxa – interrompeu o carcereiro – Como sempre... Você não existe.
- Pois bem...

Atravessou a porta e desceu a escada, chegou à lavanderia. Deu de cara com o homem ao qual tanto ele quanto o carcereiro designavam a alcunha de “cegonha”.

- Chegou cedo!
- Cheguei na hora... Pelo visto você já provou do material novo!
- Faz parte do meu trabalho...
- Sei...
- Só pra saber... Pra onde vai essa encomenda?
- Importa?
- Não!
- Europa. Ela vai pra Europa...

9
A polícia não me acreditou. Disseram que jornalistas não devem meter o bedelho no trabalho da polícia... “E passar bem”. Não me restou alternativa. Tinha de ir eu mesma ao local. Foi o que fiz. Cheguei já era noite, a casa como havia visitado em minha investigação ostentava grades de bitola grossa em todas as janelas. Cada uma delas tinha um aparato de eletrificação. Não podia ser outra casa. Fui pelos fundos e pulei o muro (que dava com um terreno baldio). Entrei em passos leves... Algumas vozes começaram a tomar forma a minha frente. Avistei dois homens, que diziam: “- Faz parte do meu trabalho... - Sei... - Só pra saber... Pra onde vai essa encomenda? - Importa? - Não! - Europa. Ela vai pra Europa...” Nesse momento o solo me traiu. Pisei num cabo de vassoura que rolou num barulho alto o suficiente para delatar minha presença. Fui pega.

10
“Ela viu o meu rosto!”

Dizia o “diabo” ao carcereiro e a “cegonha”. Fumava apreensivo seu cigarro e andava de um lado a outro pisando firme e austero.

- O que quer que façamos? – indagou preocupado o carcereiro.
- O que você acha? – disse de forma bravia o “diabo”
- Tudo bem... – aceitou

Amarrada e amordaçada ao lado de Sara, encontrava-se nesse momento Olga Bernard, uma pretensa a jornalista de um dos mais respeitáveis jornais da cidade. Olga olhava Sara que mais se assemelhava a um saco vazio; um ser humano vazio; lembrou-se do que escrevera em seus rascunhos quanto ao que esperava pela pobre garota: “Algo que inclui muito mais sofrimento que a morte”... Lacrimejou por estar certa.
Quando a porta finalmente voltou a abrir, uma figura familiar adentrou a sala... Um grandalhão... Sara foi levada, Olga tentou gritar, mas a voz lhe foi abafada pela mordaça apertada que lhe ocupava a boca. O choro saiu mudo. Fluindo pelos olhos.


11
Aqui estou. Consegui me livrar de minhas amarras. Não ousei gritar, acho de mais valia utilizar o tempo que me resta para transcrever o que aqui pude ver. O carcereiro é um conhecido de muitos, é o homem que opera a roda gigante no parque de diversões da quermesse. Ou ao menos, essa foi à última “fantasia” que utilizou para acobertar outro de seus seqüestros. Um segundo homem participa da “barbárie” é chamado por seus cúmplices: “cegonha”. Este é o responsável por levar as garotas seqüestradas ao seu destino. Nesse caso, Sara será levada à Europa. Qual país, não sei dizer. Porém, o mais incrível e importante nesses casos é o homem por trás de tudo. O homem que planeja e estupra menina após menina antes de enviá-las ao seu destino final. Um homem conhecido por todos em Recanto dos Malvinos. Um homem que não é outro senão...

A porta se abre. O carcereiro adentra o recinto. Olga estática diante do grandalhão operador de roda gigante não esboça reação. Não lhe pesa a morte; nem a dor; lhe pesa o bloco de anotações em sua mão. Pesa-lhe a mão do carcereiro em seu rosto, arrancando-lhe sua história de suas mãos e ateando fogo. Na história. E em Olga.


UMA CARTA PARA DEUS


1
É de próprio punho que escrevo esta carta. Acometido pela ânsia por redenção que invade todo ser humano quando sente a mão fria da morte aproximando-se, venho através desta buscar alívio a meu espírito. Acredito, no entanto não ter escapatória a um certo purgatório (no caso deste existir), mas não me furtarei a esclarecer fatos marcantes de minha existência nesta última carta a qual dirijo a não outro senão a Deus; que de certo já a lê em minha mente antes mesmo de objetivar seu conteúdo em papel e tinta, fazendo desta forma, a citada carta uma redenção que busco acima de tudo comigo mesmo. Minha história existe sob pecados e males cometidos sobre terceiros; minhas justificativas se seguem incoerentes uma vez que não se justifica o que fiz em minha vida. De qualquer forma... Acredito que esta carta não será lida, por outro senão eu, e Deus. Por onde começar senão pelo começo:
Minha vida foi repleta de fortuna e bens, aprendi de forma brusca que quando dizem que dinheiro não traz felicidade não mentem. Foi há não muitos anos que minha decadência se iniciou; e como a maioria das decadências, nasceu da perda.
Homem de sucesso era meu irmão. Advogado, tinha dinheiro e posses; no momento em que o perdi, iniciou-se meu penar; já que era eu tão afeiçoado a sua imagem de irmão mais velho. Sua morte fundamentou-se da forma mais terrível imaginável no âmbito da tragédia. Em sua lua de mel, sobrevoando o mar, um acidente lhe tirou a esposa, Monique; a deriva no mar foi ele induzido pelo piloto ensandecido a comer da carne de sua própria mulher desfalecida; acreditado de ter se alimentado de gaivota, a descoberta de seu ato canibal o levou ao suicídio. Isso me abateu profundamente levando-me ao amor mais corrosivo que qualquer homem pode obter em sua vida: cocaína. Foi este mesmo amor que me levou ao estado mais deplorável existente; mas isto, no entanto, guardarei para contar adiante, uma vez que quero falar sobre meu pai.
Meu pai é também outra vítima da perda. Só que ele, atacado pela perda de minha mãe vários anos atrás. A citada perda fez de meu pai um homem louco; a rotina tornou-se sua obsessão e ele a guardou até o último dia de sua vida, quando morreu de um ataque fulminante do coração. Havia aberto mão de sua vida de milionário para morar na parte mais suja da cidade sendo a partir de então conhecido por todos sob a alcunha de Maquinal. Levanto este fato, pois na noite de sua morte cometi o erro mais terrível de minha vida. Como já citado, meu vício em cocaína havia me rebaixado ao estado mais baixo da humanidade. Numa noite lembro-me perfeitamente de nós noctívagos em volta da mesa de madeira com assento que em muito fazia lembrar os assentos das merendas escolares. Após uma noite inteira de abusos parti para a minha queda definitiva, que se deu num bordel aclamado nas redondezas, um bordel chamado Serra Leoa. Neste, fui infectado pela moléstia que carrego em minhas veias desde então: HIV é como é conhecida e cujo nome popular não me encorajo em nem sequer citar. Foi na descoberta de ser um portador que me inclinei ao “diabo”. Fazendo de meu corpo uma ferramenta de sua proliferação, utilizava crianças que posteriormente vendia para disseminar o vírus pelo mundo; as possuía, antes que a “cegonha” as levasse para prostituição em paises distantes Fiz isso vinte e quatro vezes nos últimos dois anos. As meninas eram adquiridas através de meu cervo: o “carcereiro”. A última foi enviada a Europa, segundo sei.
Agora que aqui me encontro, prestes a me dobrar a morte, penso em outro de meus erros. Com a população frente à prefeitura na qual lidero, penso no garoto que morreu após ter contato com uma das substâncias que acobertei com um lixão. Substâncias da antiga Sirius Technology. Os moradores do morro vizinho estão aqui agora. Frente ao meu gabinete, e neste momento coquetéis molotov atravessam minha janela. Incendiando minha sala. Não sairei... Afundarei com minha embarcação como todo capitão. Nesse momento, por algum motivo, volta-me o nome da mulher que me infectou. A meretriz mais linda de Recanto dos Malvinos: Carmine.
Uma questão me surge agora e dirijo a você, meu Deus, o único que terá acesso eterno a esta carta que já queima a minha frente ao mesmo tempo em que a escrevo. Essa indagação não poderia ser outra senão:

“Por quê?”.












_________________________
Everaldo Chagas – Prefeito.