quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Diálogos de Neruska

Olhava um mofo desses que nascem entre as rachaduras do asfalto. Era verde, e formava dentro das diversas rachaduras uma espécie de mapa – algo que parecia com um mapa, é claro. Nesse momento, curvei-me para olhar mais de perto; e então mais perto. E quando me aproximei o suficiente - meu nariz já tocava o chão -, ouvi...:

- O que existe além, abismo? – Este era Friedrich, indagando a um amigo, o que existia além do ponto mais distante que as mentes e a tecnologia de seu mundo eram capazes de enxergar. Em nosso caso, o abismo ao qual Friedrich refere-se, é a guia da calçada.
- Não existe “além”! O abismo é infinito.
- Mas dizem que ele está em expansão. Como pode ser infinito e estar em expansão?
- Sei lá! Pra quê perguntar-se sobre isso. O abismo está lá e pronto.
- E se o abismo for infinito para nós apenas em relação ao nosso tamanho.
- Também é infinito em relação a um edifício.
- Sim! Mas digo em relação ao nosso mundo. E se por exemplo, o sol que nos ilumina for apenas uma lâmpada de um universo bem maior que o nosso. – Nesse momento Friedrich referia-se ao nosso poste de luz – Não dizem por aí que uma hora ou outra o sol vai apagar?! E se isso significar que a lâmpada deste universo bem maior que o nosso queimou. Toda nossa existência esta baseada no calor de uma lâmpada de um universo bem maior e quando ela queimar todos morreremos. Um eletricista deste outro universo trocará a lâmpada e a vida recomeçara a florescer em nosso mundo a partir da estaca zero. Por sua vez; esse universo bem maior tem um sol que é uma lâmpada de um universo bem maior e assim sucessivamente em escala infinita...
- Você quer dizer então que nossa existência; tudo que criamos em tecnologia; medicina; artes; ciência... Tudo isso durará o tempo de vida de uma lâmpada? E quando essa lâmpada desse mundo bem maior queimar, todos nós morreremos?
- É... Mais ou menos isso!
- Olha, Friedrich! A vida é muito curta. Se você esquentar a cabeça desse jeito não vai chegar aos dois segundos.
- Tens razão! A vida é muito curta.... Mas em relação ao quê?

Nota de Neruzka:

O mundo tal como conhecemos está em fase de deterioração constante. Assim como tudo nele. Tudo acaba. Tudo se transforma. Tudo é movimento. Nada é estático, porque existe em função do tempo. O Tempo relaciona-se conosco em relação à realização de nossa subjetividade latente. Ou seja, imaginemos uma mosca que viva um dia. Um dia, claro, é uma concepção nossa. No entanto, o que consideramos insignificante em termos de existência – um dia – para a mosca é o suficiente para que ela realize todo seu ciclo de existência. Sendo assim, o tempo não existe como forma fixa. Sua existência é relativa ao ciclo de existência de cada um que coexiste com ele. Logo, a vida, que tanto atribuímos o mérito de soberana; o sol que nos aquece; o universo que concluímos como o ápice do tudo... Talvez todo nosso vislumbre existencial seja uma breve explosão de rojão das comemorações de ano novo de um universo bem maior.

O Desenho", in: "O Exagero da Verdade"

Ela me torturava com o olhar que não me encontrava. Não posso porém lhe dirigir culpa, uma vez que é impossível desenhar num lugar olhando para outro. O quadro de desenhos coletivos era ocupado por pseudo-desenhistas e pintores que disputavam cada centímetro da grande tela que ocupava o pátio da faculdade naquele sábado ensolarado. A teria convidado para uma cerveja caso não transparecesse tanto gosto pelo pincel; tive de eu me engendrar na pintura, e custei a encontrar um canto para rabiscar e dessa forma forçar a ela a percepção de minha presença.
Engraçada a volatilidade da intenção do amor em relação à situação; por vezes a segui sem que a deixasse perceber-me e, no entanto, hoje desbravei os caminhos ocupados pelos espectadores desocupados, furtei de um estojo um lápis, um 6B, e me digladiei com os que a circundavam num afã que não me cabia. Tanto lutei, que acabei por borrar o desenho de um pintorzinho metido a besta, com minha calça. Sob desculpas e perdões absortos me aproximei de meu objetivo: ela.
Sua compenetração me remetia à imagem de um psicógrafo incorporado que não só não enxerga o mundo ao redor de seu trabalho espiritual, como também não está nele. Entrei no espírito; imaginando que talvez meu talento artístico atraísse a atenção dos espectadores, atraindo consequentemente a dela. Incorporei também.
Comecei por olhos extremamente sombreados e delineados em seus contornos. Os cílios longitudinais contemplavam a íris brilhante e negra, dando-lhe um ar oriental no sentido misterioso do feitio. Desci lépido ao nariz fino, não arrebitado, mas com personalidade sem deixar de ser feminino; com a ponta de meus dedos delineei o contorno que me levava a boca, entreaberta como as bocas que suplicam por outra pedindo o beijo. Era uma boca rosada mesmo em preto e branco. No contorno do rosto, utilizei da mesma técnica, e a suavidade com a qual ele se acentuou, fino, com as maçãs ressaltadas docemente, pedia a carícia da mão amada. Os cabelos negríssimos e lisos eram poesia em seu brilho e construção; presos numa forma desarrumada fincado por uma caneta, deixavam de fora uma pontinha de orelha de onde pendia um brinco artesanal que fazia lembrar um apanhador de sonhos. Ele culminava no início de seu pescoço, um caminho sem volta, uma terra de ninguém.
Era uma obra de arte. Tomei distância para contemplá-la e me perguntava como era possível não apaixonar-se perdidamente; trombei em alguém. Era ela, Atentando ao desenho, e deixando uma lágrima entregar seus sentimentos mais âmagonais, pois, ela olhando para a tela, era como se olhasse ao espelho. Entreolhou-me com espanto, aproximei-me novamente da tela, que nesse momento já estava vazia pelo ardor que meu desenho causara àquelas mãos inexperientes que me circundavam, grafei ao olho esquerdo do desenho a lágrima que jazia no rosto de minha bem-amada; e beijei a mulher de grafite, borrando a tela.