sábado, 31 de janeiro de 2009

AZÁFAMA - Teatro

PERSONAGENS:


1° ATO

Ubaldo Salomé
Fonseca Souza
O varredor
A garçonete
João Flores
Maria de Albuquerque Flores
O operário
Raul Zanom
Terezinha Zanom
Saulo Pontes
Dona Kekel
Mãe de Maria de Albuquerque Flores
Pai de Maria de Albuquerque Flores


2° ATO

Ubaldo Salomé
Fonseca Souza
Jorge Fuzarca
Padilha
O delegado
João Pequeno
O meliante
Virgínia Fuzarca
Shirley Vera Cruz

INTRODUÇÃO

Luz em Ubaldo Salomé, fumando um cigarro, à frente da cortina fechada; e olhando hora em vez no relógio.

UBALDO - Ai, meu saco... Cadê esse Souza?...

Fonseca Souza entra sorrateiro e assusta Ubaldo

SOUZA – Fala, Salomé...

UBALDO – Caceta, Souza... Sou cardíaco, bicho...

SOUZA – Relaxa, meu amigo... Hoje é dia de comemoração. Diga lá, trouxe a parada?

UBALDO – Claro... E você?... Trouxe?

SOUZA – Logicamente, caríssimo, Salomé.

UBALDO – Será que esse povo vai gostar?

SOUZA – E tem outro jeito? As saídas estão trancadas...

UBALDO – Têm música?

SOUZA – Tem sim senhor!

UBALDO – Drama?

SOUZA – Tem sim senhor!

UBALDO - Comédia?

SOUZA – Sim senhor!

UBALDO – Têm 40 conto pra me emprestar, aí?

SOUZA – Êêêê.. Aí não né, Salomé.

UBALDO – Então você banca a conta do boteco hoje!

SOUZA – Mas não dá na mesma, porra? Te emprestar ou pagar sua conta?

UBALDO – Deixa de ser sovina, você é muito apegado aos bens materiais, Bicho. Tem que ser mais ligado nas pequenas coisas do dia-a-dia; dinheiro é um mero meio necessário às realizações de nossos desejos... Além do mais, vamos logo, senão o boteco lota e não arranjamos mais mesa.

SOUZA – Ubaldo, Ubaldo...

UBALDO – Fonseca, Fonseca...


PRÓLOGO
A cortina permanece fechada; vão saindo de cena ao mesmo tempo em que um varredor de rua vem entrando, varrendo; a banda entra aos poucos.

Banda toca “Azáfama”

Cinco e meia o despertador tocou
Sacudi-se e levantou
Corre come caga se veste e sai
E como sempre vai
O que será que eu quero e não sei ainda?
Terá a ver com a morte ou a ver com a vida?
Sabendo nunca irei me perguntar,
onde ir quando ir a que horas voltar.
O ser humano assistiu a uma parcela insignificante da existência na terra.
E mesmo assim toma como lógica a sua posse,
baseia-se na prudência de sua crença,
taxa como insana a sabedoria deslocada,
mas como diziam os gregos:
“Bebam ou vão embora”.
Nós não temos pé nem cabeça,
não temos começo nem fim,
nem razão nem loucura.
E sem careta ou sorriso,
nem amor nem ódio.
Nós não temos medo.
Não!
Na verdade nós temos medo.
Medo de ter coragem o bastante para não ter mais medo,
nem chão, nem céu, nem inferno, nem paraíso.
Nós não esperamos nada, e nada espera a gente.
Nós não mudamos nada, e nada muda a gente.


Breque na banda; Black-out













1.° ATO


CENA 1

Mesa de bar; luz fraca como de bordeis; uma música “chocha” ao fundo. Sobre a mesa encontra-se uma garrafa de cerveja, cinzeiro, maço de cigarros e etc.. Ubaldo Salomé e Fonseca Souza estão sentados à mesa e levantando um brinde.

UBALDO – Á Fonseca Souza: o maior escritor deste país...

SOUZA – Não, não, não...? Á Ubaldo Salomé: Esse sim, o maior escritor de nosso Brasil

Eles efetuam o brinde ao mesmo tempo em que uma garçonete (de saia bem curta e coxas bem grossas) se aproxima com uma caderneta na mão e indaga à mesa:

GARÇONETE – Vão comer o quê?

SOUZA – Eu acho que vou querer uma loira... E você Salomé?

UBALDO – Tem ruiva à passarinho?

GARÇONETE – (faz cara de: “dai-me paciência...”)

SOUZA – Que indelicadeza, Salomé, vai deixar a moça encabulada. Traz uma garrafa de conhaque pra gente e por enquanto é só, meu amor. (lhe dá um tapa na bunda; ela sai).

UBALDO – Mas iaí, Souza? Diga, lá... Onde se passa a história do seu livro? Diga tudo, não omita nada.

SOUZA – Se passa num bairro operário!

UBALDO – Opa. Tá com cara de Rubens Fonseca... Não vai me dizer que é na época da ditadura militar?

SOUZA – Não, não... Na realidade não é datada. Isso fica em aberto.

UBALDO – Beleza... Mas e a história?

SOUZA – Bem, é algo bem próximo de uma tragédia grega.

UBALDO – Caceta, Souza... Então deve ser um porre...

SOUZA – Que mané porre o quê. Digo tragédia grega porque nos remete a histórias de enredos complexos...

UBALDO – Então seu enredo é complexo? To até vendo...

SOUZA – É de certa forma um enredo complexo sim. Como a maioria dos enredos bons.

UBALDO - E por onde começa esse “complexo enredo”

SOUZA – Bem... Como toda grande história; ela começa do amor.

Entra uma cena de amor entre Maria e João enquanto
Banda executa “Mar de Uva”


Eu corria através de você.
Com medo de me perder.
Na cidade da normalidade.

Você corria através de mim.
Perdendo seu medo enfim.
E talvez a natalidade. Salve

E todos irão convir,
não andarei por aí, mais só...
Normalidade

A luz cai bem suave e volta para o Bar de Souza e Ubaldo



UBALDO – O.k., sua história começa numa foda, então!?

SOUZA – É colocando dessa maneira fica meio chulo... Mas é bem isso mesmo.

UBALDO – Muito criativo...

SOUZA – Na verdade não é só uma transa, babacão.É um prefácio. Acontece algum tempo antes da história começar.

UBALDO – Ué, mas a história não começa na transa?

SOUZA – Na verdade, a transa é um elemento da complicação da história. No entanto, ocorre antes da exposição. E só então, quando chegamos no climax; ela é retomada. A transa ocorre algumas semanas antes do inicio da história. É como se fosse um prólogo.

UBALDO – Não complica, Souza. Começa do começo que fica mais fácil pra todo mundo entender.

SOUZA – Tá o.k., vai...Começa da forma mais clássica possível. Numa manhã aparentemente comum:

UBALDO – Olha lá hein, Souza...

A Banda entra com “Maria e a Demissão”

Um belo dia, Maria acordou;
virou de lado e não olhou.
A Cama vazia, tão fria.
Tateou pelo colchão,
ao invés de João, uma carta dizia:
“Maria querida eu fui trabalhar,
demoro então não precisa esperar.
Com um mês ou dois fazendo “cerão”,
eu ponho à mesa e pago a prestação”.
Um belo dia, João acordou;
virou de lado e olhou, Maria.
Levantou de supetão,
preparou a carta e um pão;
beijou-a enquanto dormia. “Querida”.
E partiu em sua nuvem fria de marmita na mão,
rumo ao trabalho em busca de seu próprio pão.
Era cedo, estranhou: uma fila estendia,
varando a rua virava a esquina,
e em cada boca uma reclamação,
devido ao volume desta demissão.
“Em nome do patrão”.
E tudo acaba antes que chegue a se ossificar,
tudo que é sólido desmancha no ar.
Todo sagrado é profanado, inclinado:
Sobre o indivíduo,
sobre o mais próximo e mais querido;
sobre a rua, sobre o filho,
sobre mais secreto recesso do desejo e da vontade;
o perigo, “a mãe da moralidade”.
Desculpe meu ritmo afogueado,
tentando expressar esse mundo impregnado,
impregnado do contrário
e eu o otário, estúpida força material,
carrego uma tonelada,
SEM SENTIR O ODOR DO LAMAÇAL.
Do lamaçal.

CENA 2

Nos momentos finais da música um protesto está em andamento frente à empresa. A polícia chega descendo o cacete e dispersa a multidão. A luz apaga nesse cenário e acende num balcão de boteco onde João está bebendo com um outro operário.

JOÃO – Fodido! Estou Fodido!

OPERÁRIO – Depois de tantos anos.

JOÃO – Aquele corno...

OPERÁRIO – Sem explicação nenhuma...

JOÃO – Falência!? Onde já se viu... Pura armação financeira. Capitalista desgraçado.

OPERÁRIO – Saímos com uma mão na frente outra atrás...

JOÃO – Mão atrás tarde demais, né... O filho da puta fodeu com a gente bem antes de dar tempo de proteger.

OPERÁRIO – Fodeu sem manteiga...

JOÃO – E com terra...

OPERÁRIO – Quero ver o quê que aqueles pelegos do sindicato vão fazer agora.

JOÃO – Porra nenhuma, né... A porra da empresa abriu falência; não vai pagar ninguém. Essa é a jogada.

OPERÁRIO – O dono safado... Aquele veado do Raul Zanom... Tá com certeza com o cu cheio de dinheiro. Abrir essa falência foi um golpe pra enrica mais ainda.

JOÃO – Lógico. Escroto, desgraçado.

OPERÁRIO – Desgraçado, escroto.


CENA 3

No escritório de Raul Zanom, ele fala ao telefone. É um escritório clássico, ele está à mesa, que é repleta de papéis e etc....

ZANOM – É meu velho... Falei? Falei! Foi melzinho na chupeta... É assim que funciona o mercado hoje em dia: Ou você dá! Ou você leva... Como eu não sou de levar... Botei no dos outros, antes que botassem no meu (risos). Claro! Vou! Vou sim... Nicarágua! Parto depois de amanhã. A grana? Lógico que já. Já tinha cuidado disso muito antes... Tá tudo num banco suíço. É my brother... Papai aqui é macaco velho (risos).

A outra linha toca


ZANOM – Cara, vou ter de desligar que a outra linha está tocando. Nós nos falamos... E da próxima eu já estarei colhendo os frutos... (risos) É isso aí... Tamo junto. Até.... Alô (na outra linha).

SECRETÁRIA – Dr. Raul, sua mulher na linha dois.

ZANOM – Ai, caralho... Passa vai... Fala Terezinha...

TEREZINHA – Raulzito, meu amor... Quero saber que horas você vai chegar.

ZANOM – Ah... Hoje eu demoro, viu... Tenho muito que arrumar aqui no escritório... Tenho muita conta pra fazer... Muito trabalho...Chego tarde, bem tarde...

TEREZINHA – Não vou te esperar, então (ríspida)

ZANOM – Não espere, porra!

TEREZINHA – Ótimo!

ZANOM – Ótimo.

Terezinha bate o telefone.

ZANOM – Vaca, desgraçada... (ele aperta o botão do interfone que o liga com a secretária) Dona Kekel!?

SECRETÁRIA – Pois não, Dr. Raul?

ZANOM – Venha cá.

A secretária entra na sala e Raul a agarra abruptamente e a atira sobre a escrivaninha; ela não faz corpo mole: parte pra cima também.

ZANOM – Temos muito trabalho. To entupido de trabalho...

SECRATÁRIA – Entupido é?! Deixa que eu desentupo...


Ela agacha dando a entender que vai chupar Zanom. A banda toca “Raul e a Estante”

O que você tem na cabeça, nos olhos e no coração.
É seu direito, porém não da direito a minha atenção.

Realidade alternativa depende do querer...
Ela tanto pode ser minha quanto pode ser de você.

E a perder a vida prefere morrer;
estar à margem não é um prazer.

Mas me ama sem querer,
sem querer uso você, como via de meu lazer.
Te tendo para exibir
e a noite lhe despir.

Para um mundo que a ama bem mais do que eu,
um amor refletido que se torna meu!
E é meu. Todo meu.
Esse amor se tornou todo meu.







CENA 4

De volta ao bar de Ubaldo e Souza

UBALDO – Caralho, Souza. Que Salada... O Cara dono da empresa tem então um caso com a secretária!? A-lá Clinton...

SOUZA – Pois é... Na verdade ela é bem putinha mesmo; só foi contratada por isso.

UBALDO – E tem currículo melhor? Se fosse você tinha dado nome de Mônica Levinski pra essa secretária.

SOUZA – Não viaja, Salomé. Além do quê, o Raul tá bem de puta nessa história.

UBALDO – Como assim? Tem mais puta é? Tá ficando bom agora.

SOUZA – A mulher dele...

CENA 5

A luz abaixa e acende em outro cenário: a casa de Raul Zanom. Onde, no Quarto se encontra sua esposa, Terezinha; de lingerie; tomando champanhe ao lado de seu amante; ela desliga o telefone ao mesmo tempo em que fala:


TEREZINHA – O corno disse que vai demorar.

AMANTE – Então dá tempo de brincarmos um pouquinho mais, né, minha Nega!?

TEREZINHA – Dá sim... Mas aquele negócio não pode passar de hoje, hein. É a melhor oportunidade. Tem um bando de operário, loco-da-vida com ele. Vai ser perfeito, meu gorila... (brinda)

AMANTE – Relaxa, Nega. Comigo não tem erro. Tá tudo arranjado (ele pega uma arma que acaricia. Os dois riem e se atracam na cama)

TEREZINHA - Ai, adoro uma arma...


A banda toca “Casada Embicada”

A Casada embiocada
bem trajada, e malcomida,
antes quer na sua vida
ter saia, que ser honrada.


A casada com adorno,
e o Marido mal vestido,
crede, que este mau Marido
penteia monho de corno.[1]

E quando o diabo atiça,
Vês na morte a justiça.

Quer dinheiro jóia carro
Mansão, quer o caralho.
Para dizer que é seu.









CENA 6

No Bar de Ubaldo e Souza


UBALDO – Agora sim tá ficando interessante. Quer dizer que a mulher dele também tinha um amante... Que doidera, Souza. O amante mata ele então e eles ficam com toda a grana do defunto?! Aí já era...

SOUZA – Calma lá, meu caro...O negócio é que como a mulher dele mesmo disse, tem mais pessoas com o “ovo virado”. Mas o clímax está chegando... Lembre-se do que te falei. O clímax...

UBALDO – (contemplando o infinito) O Clímax...

CENA 7

No Balcão de Boteco onde estão João e o Operário; os dois já estão bem bêbados.



OPERÁRIO - Não pode ficar assim.

JOÃO – Não pode!

OPERÁRIO – Esse filho duma puta tem que pagar pelo que fez.

JOÃO – Tem... Tem de pagar...

OPERÁRIO – Eu to cansado de ser bonzinho

JOÃO – Eu também, to cansado de ser bonzinho.

OPERÁRIO – Temos que botar pra fude dessa vez.

JOÃO – Bota pra fude!

OPERÁRIO – Não temos sangue de barata.

JOÃO – Sangue de barata? Nem fodendo...

OPERÁRIO – Vamos lá na frente da firma esperar aquele veado sair

JOÃO – Vamos esperar ele sair.

OPERÁRIO – Ficamo de tocaia; sorrateiros

JOÃO – Sorrateiros, de tocaia...

OPERÁRIO – E quando o desgraçado sair...

JOÃO – Quando o desgraçado sair...

OPERÁRIO – A gente mata ele.

JOÃO – A gente ma... (interrompe o raciocínio) Mata ele?

OPERÁRIO – É ué...

JOÃO – Tava pensando em algo mais leve, e tals...

OPERÁRIO – Que mané mais leve, João.

JOÃO – Pois bem, a gente mata ele.

OPERÁRIO – Assim que se fala.

JOÃO - Aquele corno.

OPERÁRIO – Corno.

JOÃO – Mau caráter.

OPERÁRIO – Mau caráter.

JOÃO – Aquele... (o celular de João toca)

Em Off, ainda na cena do Boteco onde está João

UBALDO – E quem era no celular?

SOUZA – Quem mais haveria de ser? Maria... A esposa de João.

UBALDO – Xiiii.. Aí caiu a casa do coitado...

SOUZA – Ainda não.

De volta no bar de João e o Operário

JOÃO – Caraio, bicho; é minha esposa... Alô!?

MARIA – Oi, amor...


JOÃO – Oi... Quê que houve?

MARIA – Nada não...É só que.... Mas que barulheira é essa, João?

JOÃO – Ah... barulho? Á tá.... Esse barulho... É.... O refeitório da firma...Sabe como é, né... Um bando de homem... Falando de futebol... E tal...

MARIA – Á tá... Então, liguei porque você disse no bilhete que ia fazer hora extra hoje. Mas hoje você não vai poder não.

JOÃO – Não vou é?... Porque não vou...?

MARIA – Marquei um churrasquinho aqui na casa da minha mãe. Tenho uma novidade que preciso contar aos nossos amigos. E logicamente você tem de estar.

JOÃO – Novidade? Amigos?

MARIA – Meus amigos né, João... Afinal, você só tem amigos nessa joça dessa firma. Mas se quiser trazer algum deles traz.

JOÃO – Na firma né...

MARIA – Tá esquisito João! Que foi?

JOÃO – Esquisito? Não, não.... É o celular que tá cortando a ligação aqui pra mim...

MARIA – Tá bom então. Te espero aqui as oito então o.k.?

JOÃO – Oito... Você quer dizer daqui a pouco?

MARIA – Pô, João. Você sai às seis.A Empresa fica perto vai... Dá pra vir a pé.

JOÃO – Sim, sim.... Oito horas, então.

MARIA – Beijo então, meu amor.

JOÃO – Beijo... (desliga) Porra, Bicho; agora fodeu.

CENA 8

No bar de Ubaldo e Souza


UBALDO – Churrasco, Cara?

SOUZA – Churrasco!

UBALDO – Pois, boa!

SOUZA – Boa o quê?

UBALDO – Garçonete (acena ela se aproxima). Traz uma porção de churrasco pra nossa mesa. Com rodelas de pão e vinagrete. Traz mais um chopinho pra cada um e uma dose de whisky pra mim. Á, e churrasco de picanha hein. Nada de maminha, não. (a garçonete anota o pedido e se afasta)

SOUZA – Caralho, Salomé. Tá esquecendo de quem tá pagando a conta essa noite?

UBALDO – Relaxa, Fonseca. Na próxima garanto que eu pago. E além do que, essa sua história aí vai te deixar rico, Fonseca. RICO!

SOUZA – Você é, é um cara de pau.

UBALDO – Ô... Souza. Qué isso. Essa sua história merece um bom acompanhamento...Vai, continua aí. Churrasco na sogra do João; e daí...

SOUZA – Bom... Não preciso dizer que o João não estava nem um pouco a vontade...


Banda entra com “o Reclamão”

Churrasco o chão tá molhado por conta da chuva
e meu pé tá molhado por conta do furo,
que não pude consertar!
Então sorvo as pedras que estão no caminho
uma delas cutuca e me dói o mindinho;
que merda o céu voltou a pingar!
A cerveja tá quente!
Eu ando tão descrente...
Quando chega o gelo, aí, me dói o joelho.
Do que mais vou reclamar?
Acho que vou vomitar!


CENA 9

Quintal; churrasqueira portátil, pagode; e João de canto


MARIA – Pô, meu amor. Que cara é essa?

JOÃO – Cansaço. É só cansaço.

MARIA – Ó... meu galego... Tá cansadinho.(João se afasta dos carinhos de Maria) Então não vou ficar enrolando, não. E daí, garanto que tu ti anima já... (Maria puxa uma cadeira e sobe nela; pede silêncio, que aos poucos é atendido pelos convidados do churrasco).
Atenção! Atenção de todos por favor... Vocês estão bebendo... Estão comendo... Mas..... esse festerê todo tem uma razão... Além é claro, de comemorar minha imensa felicidade
em compartilhar minha vida com um homem tão maravilhoso, trabalhador, honesto... (puxa-saco – alguém grita no meio do povo); enfim: o amor da minha vida; E esse amor, agora... Me desculpe meu, Amor... Mas vai ser dividido. Mas relaxa que tem pra todo mundo. Amor é coisa sem fim, nem começo. E por isso quando se divide aumenta. João, meu amor. Papai, mamãe, amigos e parentes...Essa festa hoje é pra comemorar... A benção que floresce dentro de mim... Meu amor; estou esperando um filho nosso.

O povarel grita, aplaude, chora, abraçam João, abraçam Maria. Mas João, no entanto, parece estar em estado de transe. Ele bambeia, bambeia. Até que desmaia.

CENA 10

No escritório de Raul Zanom: A secretária está deitada sobre a mesa; Zanom se afasta fechando a braguilha; vestindo a camisa e etc.

SECRETÁRIA – Aí, Dr. Raul. Agora que o Senhor vai embora o que será de mim? De nossas noites de cerão?

ZANOM – Não serão né, dona Kekel. Mas fica tranqüila que lhe deixo uma boa quantia em dinheiro; por serviços prestados. (Zanom se aproxima e aperta as bochechas de dona Kekel de forma que sua boca se junte numa “boquinha de peixe”)

SECRETÁRIA – Não estou falando de dinheiro, Dr. Raul.

ZANOM – Tudo é dinheiro, dona Kekel. Absolutamente tudo. Não se faça de boa moça pra cima de mim, vai. Esse rótulo não lhe cai bem.

SECRETÁRIA – Bem... Dinheiro ajuda, mas é que no fundo eu realmente gosto de... (seu raciocínio é interrompido com a visão do objeto que Zanom tirou de sua gaveta: uma arma) Pra que essa arma, Dr. Raul?

ZANOM – Com essa história da falência e do calote se espalhando por aí... Tem muita gente doida pra me pegar. Não vou dar bobeira. Vou até deixar o carro aqui. Meu motorista vai estar me esperando na rua de trás. Mas essa belezinha aqui (apalpa a arma), essa sim é a minha maior proteção.

SECRETÁRIA – Você fica sexy segurando essa arma...

ZANOM – Você acha é?

SECRETÁRIA – Acho sim!

Zanom faz pose empunhando a pistola

SECRETÁRIA – Ai, vem aqui mais um pouquinho, vai. Meu pistoleiro. Meu António Bandeiras...

Zanom parte pra cima da secretária e as luzes vão baixando.

CENA 11

De volta ao churrasco na sogra de João. Estão todos em volta de João, que está caído desmaiado no chão; uns assopram, outros abanam, alguns lhe batem no rosto... Alguém lhe joga um pouco de água, e ele acorda.

MARIA – João, meu querido. Que foi? Tá se sentindo bem?

João olha ao redor meio desnorteado e se levanta.

MARIA – Quer um copo de água?

SOGRO – Dá um conhaque pra ele que ele melhora.

SOGRA – Cala boca (dando-lhe um tapa no braço)

MARIA – Meu amor... Fala comigo. Que aconteceu?

JOÃO – Grávida? Você tá grávida, é?

MARIA – Querido... Eu...

João completamente grogue e desnorteado levanta, saí andando, aumenta o passo... Corre. Sai de cena.

Banda entra com “Um bom dia”

Hoje é um bom dia para sair andando sem parar
Olhar para trás e ver o quão longe você está
E eu...
Fico pensando em um motivo pra voltar

E ela vem de longe somente pensando em lhe dizer
Que há coisas que todos sabemos mas, ninguém quer ver

Fico pensando num motivo pra voltar
Fico pensando num maldito motivo pra voltar.


De volta pro churrasco.

MARIA – Ai, mãe. Que aconteceu com ele?

SOGRA – Num sei, meu anjo.

SOGRO – Você também é sem noção né, Maria...

MARIA – Porque sem noção, meu pai?

SOGRO – Querê fazer um churrasco logo hoje...

MARIA – Mas era pra comemorar minha gravidez...

SOGRO – Logo no dia que o pobre foi demitido!

MARIA – Como demitido?

SOGRO – Minha filha... Ele não te disse? Você não lê jornal, nem assisti televisão? A empresa do Zanom, essa que o João trabalha; faliu. Deu o maior golpe na praça. Mandou todo mundo embora.

MARIA – Ele não me disse nada... Você podia ter me dito também, né.

SOGRO – E o que eu tenho com isso. Quem tem de te dar esse tipo de noticia é teu marido. Mas vai ver você nem deu tempo pro coitado! Esbaforida igualzinha a mãe...

MARIA – Aí, meu Deus... Preciso ir atrás dele...

SOGRA – Calma, minha filha. Espera que ele volta.

MARIA – Quê espera o que, mãe... Conheço meu marido. É capaz de fazer alguma besteira... Deve tá loco da vida... Eu vou atrás dele.

SOGRA – Tá tarde... É perigoso...

MARIA – Vou pela rua de trás da firma que é mais iluminada... Segura a onda com os convidados que em dois tempos tô de volta.

SOGRA –Ai, meu Senhor...

Maria coloca a bolsa a tira colo e saí.





CENA 12

Fundos da empresa de Zanom. Zanom está pulando um portão; seu motorista (de costas pra platéia) o aguarda


ZANOM – Me ajuda aqui, estrupício.

MOTORISTA – Sim senhor.


Zanom já no chão, limpa as mãos; nesse momento o motorista vira-se para a platéia e é possível ver que ele é o amante da esposa de Zanom. O amante saca a arma; Zanom está de costas para ele e ouve a arma sendo engatilhada; vira- se de supetão e num tapa, tira a arma da mão do amante/motorista; ele saca sua
própria arma e os dois se atracam. Eles rolam no chão disputando a arma ao mesmo tempo em que discutem.

ZANOM – Porque isso agora, Pontes? Endoido?

AMANTE – Tu é mesmo um corno manso... Endoidei não. Mas você deve de ter. Ou acha mesmo que sua patroa ia à livraria dia-sim-dia-não? Ela nunca leu uma letra daqueles livros que ela trazia. O negócio dela era lê outra coisa... Lia minha lira.

ZANOM – Sabia que tinha a pata daquela vaca nisso. Ela tá te usando seu estrupício... Larga de ser besta... Vai estragar sua vida por causa disso?

AMANTE – Pois, é... Você nunca foi macho o suficiente pra ela. Mas eu sou. Não sei por que você deixava ela tão de canto; ela até que é bem gostosinha... E fode que é uma beleza...



A disputa fica mais intensa e nesse momento a arma dispara. A bala segue para um local que não está em quadro. Os dois olham aterrorizados na direção para onde o tiro foi desferido. No baque da visão que os dois tem, o motorista/amante se distrai e Zanom acaba com a arma em mãos; desfere um tiro contra o amante da esposa, e arrasta seu corpo para fora da cena. A luz abaixa enquanto ele sai.


CENA 13

Casa de João. João está bebendo à mesa; olhando para o nada numa feição vazia. A cena dura algum tempo enquanto ele gira uma moeda sobre a mesa. O silêncio é interrompido pelo telefone.


JOÃO – Alô

TELEFONE – Boa noite, por gentileza, com quem eu falo?

JOÃO – João!

TELEFONE – Senhor, João. O senhor por acaso tem algum parentesco com Maria de Albuquerque Flores?

JOÃO – Claro que tenho, ela é minha mulher. Por quê?

TELEFONE –Qual o nome completo do senhor?

JOÃO – João Flores! Qual a razão disso? Aconteceu alguma coisa?

TELEFONE – Estou entrando em contato com o senhor daqui do hospital central, Souza Cruz... É necessário que o senhor compareça aqui para...

JOÃO – (interrompendo) O que aconteceu com minha mulher?


TELEFONE – É realmente necessário que o senhor venha obter informações pessoalmente pois não temos autorização para dar informações sobre o quadro clínico dos paciente por telefone e...

JOÃO – Quadro clínico? Fala! (alteradissimo) O quê que houve, caralho.

TELEFONE – Senhor, realmente, o regimento do hospital não permite e eu...

JOÃO – FALA, porra! Que aconteceu? Que porra é essa? Você me liga e não dá informação, caralho? FALA!

TELEFONE – (complacente) Ela foi baleada, senhor.

JOÃO – Baleada? Como? Por quem?

TELEFONE – Foi uma bala perdida, senhor. Próximo à rua dos Congregados.... Ela foi atingida. Não posso dar mais informações e é realmente necessário...

JOÃO – (para si mesmo) É a rua de trás da firma... (ao telefone) Como ela está?

TELEFONE – O senhor vai me perdoar mas eu realmente não posso passar esse tipo de informação eu...

JOÃO – (Gritando) Fala, como ela está, porra! Senão vou ir aí botar esse hospital a baixo!

TELEFONE (suspiro) Ela não resistiu senhor... O senhor necessita comparecer para o reconhecimento, então é necessário portar os documentos pessoais e...

João arranca o telefone de seu fio e o atira contra a parede.
A banda entra com “Bala tem Asa”

Disseram não saia mais de casa pois tem bala de asa
Voando pelas ruas atrás de pessoas nuas de conhecimento e pudor

Escolhem por alguém
E escolhem sem rancor

Disseram não saia mais de casa pois tem bala de asa
Ninguém sabe quando vem porque vem para quem vem...
Para quem vem?
Implícitos e mortos, meu amor...

Baixa a luz.

CENA 14

Na casa de Zanom, em seu quarto. Sua mulher está deitada na cama quando Zanom entra com um saco preto em uma das mãos. Ela se espanta com sua chegada.


ESPOSA – Raul? É.... Chegou cedo... Que aconteceu?

ZANOM – Sua prostituta... (ele saca a arma, ela corre para trás da cama)

ESPOSA – Amor, que foi? Que te deu?

ZANOM – Tive um encontro com nosso motorista... Ou seria o seu motorista!? Ou seria o seu amante? (ele engatilha a arma) Sua vaca!

ESPOSA – Ele me forçou a tudo, Raulzito... Eu Juro... Não foi minha culpa...

ZANOM – Pois vá jurar ao capeta sua piranha. Que eu não sou homem de carregar cornos na testa...

ESPOSA – Meu amor... Por favor... Ele era maluco.... Ameaçou matar minha mãe meu pai, meus tios, ameaçou minha família inteira se eu não cooperasse. Eu ia ligar pra você; avisar da emboscada dele... É serio meu amor. Mas foi tudo tão rápido que...

ZANOM – Fala isso na cara dele então... (ele abre o saco preto e tira a cabeça do amante de dentro; a esposa fica em choque por um instante e em seguida fica histérica. Zanom lhe desfere um único tiro).

Black-out

ZANOM – Vaca!


CENA 15

Após alguns segundos em completa penumbra, começa-se a ouvir barulho de algo sendo arrastado. Uma voz sussurrada de reclamação é ouvida bem baixinho. “vadia gorda” “Pesa uma tonelada”. As luzes se acendem, estamos no quintal de Zanom; o barulho de algo sendo arrastado é Zanom arrastando um saco preto (que fica claro ser o corpo da esposa). No momento mesmo em que a luz se acende, João está ao lado de Zanom.


ZANOM – Diabos... Quem é você? Como entrou aqui? (Zanom ameaça tirar a arma de dentro do paletó mas João levanta uma arma em mira à cabeça de Zanom). Opa, calma lá meu rapaz... Vamos conversas... O que você quer? É dinheiro? Tá na nóia. Dinheiro não é problema, eu tenho. Quanto quer? Só abaixa essa arma e podemos...

João dispara, contra o rosto de Zanom que cai morto

JOÃO – Não quero nada, não, Senhor.


João vasculha os bolsos de Zanom até encontrar um chumaço de dinheiro. Ele ateia fogo ao dinheiro; olha por alguns segundos sua carbonização.

JOÃO – Pelo que se vive e morre? Às vezes rápido. Às vezes no dia-a-dia. Na rotina da labuta. Ninguém mais vai sugar da minha vida sua vida. Do meu trabalho seu ócio. Do meu ódio o seu amor.

João em seguida dispara contra a própria cabeça. A cortina se fecha abruptamente juntamente com a luz que abaixa até a escuridão total.



FIM DO 1° ATO

















2° PRÓLOGO

Cortina fechada; luz em Ubaldo Salomé e Fonseca Souza, que vem chegando e, param no centro do palco. Eles encenam estar urinando. (att. Som Sonoplastia).

SOUZA – Caceta, Ubaldo! Porque tivemos que sair do bar pra mijar?

UBALDO – Você viu o tamanho da fila do banheiro? Eu não agüento segurar tanto assim não, Bicho... Então, mas voltando... Porra, Bicho, bem que você disse que era uma tragédia grega.

SOUZA – Não cheguemos a tanto, né... É uma síntese da idéia geral, onde prova que nem tudo é dinheiro. E que a desgraça pode afetar a todos independente de credo ou classe social. Um desempregado. O outro mau-amado. Mas chega de mim... Diga lá. Qualé a do seu livro? Ou você tá enrolando desse jeito porque não tem livro nenhum?

UBALDO – Tá me estranhando, Fonseca? Claro que tenho...

Eles terminam de urinar, viram-se para a platéia.

SOUZA – E então?

UBALDO – Vamos voltar pra mesa, primeiro. Não consigo contar historia sem beber nada... E a minha também é meio trágica, mas não tanto.

SOUZA – Salomé, Salomé...

UBALDO – Souza, Souza...

Saem de cena. Entra o Gari com balde e um esfregão, limpando o chão.
A banda Toca “Orçamento Prejuizo”


Você sorri e diz que estou bonito.
O que me preocupa é orçamento ou prejuízo.
Indagações sobre o que eu quero jantar,

Nem sei se vou voltar.

Há um bom remédio,
Pra gente conversar.
Esquecer do conteúdo,
E somente falar.

Não importa o que eu acho,
Minha vontade te espreita.
E pra tanto urubu,
Somente isso que lhe enfeita.

Me dá papéis e diz pra eu assinar,
Adverte: leia devagar.
Eu lhe pergunto: o que vem a ser?
O silêncio diz por você.

Uma boa conversa,
Podia remediar.
Tanta desavença,
Tanto criticar.
Caso sua vontade,
Não fosse ter-
-me, como um badulaque,
Para urubu te ver.


Breque na banda; Black-out


2° ATO


CENA 1

Num quarto bagunçado e de aparência suja, encontram-se Jorge Fuzarca e Padilha; eles estão sentados no chão, rodeados por latas de cerveja, bitucas de cigarro roupas e etc.; Fuzarca mantém a tiracolo um violão no qual, de quando em vez viram de bruços para esticar uma carreira de cocaína. Antes de entrar com a fala, estão terminando de “mandar uma”. Padilha apenas concorda e sempre é interrompido por Jorge antes que consiga abrir a boca


JORGE – Aí, Padilha...Não é de malandragem não; é que eu gosto da parada, porra. Qual o problema. Todo mundo tem seus vícios. O meu é o violão. Gosto de fazer meu som. Mas não... Ela não entende! Acha que é desculpa pra vadiagem. Às vezes é. Mas sabe duma coisa, cara: Às vezes me pergunto por que é que nos casamos. A gente tava outro dia deitados de conchinha naquela merda de sofá apertado; cobertos com uma manta fina e batida... Eu me perguntava, sabe, mas não pela questão em si, nem em questão de arrependimento, era curiosidade mesmo, curiosidade em saber quando foi que decidimos que casar seria o melhor a fazer. Sabe... Acho que nem nos amar de verdade a gente se amava, estávamos é acostumados com as nossas companhias. Faz uma “cara” que não transamos, cara... Também né, é foda... Aquele apartamentozinho de bosta que quase não cabe a cama de casal, brocha qualquer um; e estamos agora tão envolvidos na nossa falta de envolvimento, saca? Que às vezes por birra, outras por vontade ou falta dela, a gente se ignora por horas. Conheci a Virgínia na faculdade, ela nem era a que mais me chamava a atenção, sabe... E eu também não despertava alvoroço nenhum na nossa sala. Tinha uma porrada de revolucionários e militantes que vagavam pra-lá-e-prá-cá empunhando ideais como se fossem armas. E eu? Eu nem sequer atirava. Tava estudando por osmose. E foi lá que conheci a Virgínia. Festa num dia, namoro no outro, e logo casório. Meus amigos falavam: Tu ta se precipitando, Jorge; espera pra casar. Amigos? Também já não sabia o que era amizade; fui o último a me casar e talvez a culpa seja disso. Tava sempre, sozinho, assistindo t.v. sozinho, comendo sozinho, acordando sozinho, dormindo sozinho, batendo punheta sozinho...Quando vi a oportunidade de acabar com essa solidão, amor foi a última coisa que me passou pela cabeça, saca. Como eu passei de um músico frustrado a um desempregado fantasma nem eu sei, e também não me perdôo não, viu. Nunca tive facilidade em largar as coisas, aliás, minha banda nunca acabou, nenhum de meus namoros acabou, nem meu cigarro eu acabo direito, simplesmente abandono no cinzeiro, e espero apagar por si só. Sabe, que às vezes me pergunto, se não é exatamente isso que estou fazendo com a Virgínia!?


Eles começam a esticar outra carreira no tampão do violão.



Banda entra com “Chico Jobim”


Acordo entalado engasgado com pena de mim.
Ouvindo Chico Buarque e Tom Jobim.
Reviro a mente,
tentando entender:
O que faço eu, casado com você?

Eu que não vou. Eu que não faço. Eu que não sei. Eu que não sou.

Te explica não tem nada não,
mas o amor se recicla ou virá a inanição.
Mantém-se tão distante,
que cada noite uma amante,
supria-me a paixão!

Eu que não vou. Eu que não faço. Eu que não sei. Eu que não sou.

CENA 2

Sala de interrogatório. Uma mesa com o delegado de frente ao meliante, que está algemado. O delegado folheia a ficha criminal do meliante ao mesmo tempo em que fuma um cigarro. Ao fundo um outro policial está encostado na porta; ele tem porte de “armário” e feição de carrasco.


DELEGADO – Tu sabe que se não cooperar sua situação piora!? Tá vendo o João pequeno ali (aponta com a cabeça o policial da porta)? Ele tá loco pra interrogar você! Só que os métodos dele são menos sutis que os meus (O delegado levanta e dá a volta na mesa; se posta atrás do meliante). Se é que você entende o que estou dizendo. (Ele apaga o cigarro na nuca do meliante tapando-lhe a boca). Por isso, pau no cu... Começa a explicar direitinho essa história... Porque hoje acordei de ovo virado, sacô? Ovo virado!


CENA 3

Um apartamento pequeno mas ajeitado. Duas mulheres estão sentadas no sofá; ao fundo vemos bem grande um quadro de casamento com uma moldura bem grossa e dourada. Uma das mulheres está ao telefone, enquanto a outra está à seu lado tomando chá.

VIRGÍNIA – Caixa postal... (deposita o telefone no gancho)

SHIRLEY – Honey, não seja tonta, vai. Tá na cara!

VIRGÍNIA – Tá na cara o que?

SHIRLEY – Ele tem outra.

VIRGÍNIA – Não, Shirley... Ele não é desses... Ele pode ter centenas de defeitos, mas adultério? Me trair ele não me trairia. No fundo... Do jeito dele... Eu sei que ele me ama.

SHIRLEY – Você está tapando o sol com a peneira, querida. Estou te falando como irmã; como irmã mais velha, que tem mais experiência nesse assunto: Ele é igualzinho a todos os outros. Ou já esqueceu daquela vez que ele sumiu durante dois dias? Acha mesmo que foi vítima de um seqüestro relâmpago? Por favor, minha querida... Só você mesmo, em sua santa ingenuidade pra engolir uma lorota dessas...

VIRGÍNIA – Ele me mostrou os saques que obrigaram ele a fazer... Mostrou até a marca do revolver que os bandidos deixaram na nuca dele. Os hematomas e machucados...

SHIRLEY – Saques que ele usou pra bancar a piranha que estava com ele. E marcas, meu amor? Ele forjou aquelas marcas pra te enganar. To te falando, Virgínia, eu sinto cheiro de traição de longe... E o Jorge; ah nesse eu sinto um futum brabo faz é tempo. Me ouve: faz um malinha e vamos embora comigo. Pra minha casa.

VIRGÍNIA – Não posso, Shirley... E além do que... Tenho certeza que ele vai aparecer daqui a pouco. Deve de estar num lugar onde o celular não pega. Sei lá...

SHIRLEY – Ah está sim... Está no motel. Celular de homem tem mania de não funcionar em motel. Meu primeiro marido tinha um celular que pegava até em subsolo de estacionamento de toupeira. Mas era só entrar num motel que o celular desatinava a não funcionar. Eles desligam... Porque sabem que dá pra localizar via satélite se ele estiver ligado! Eles pensam em tudo. Devem até ter um sindicato dos maridos adúlteros. Um fórum com grupo de discussão e um 0800. São extremamente organizados... Uma sociedade secreta da traição masculina.


VIRGÍNIA – Você fica enfiando minhoca na minha cabeça... Depois eu fico encucada. Eu acredito no meu Jorge. Ele não tá em motel. Não desligou o celular. E com certeza não pertence a nenhum sindicato.

SHIRLEY – Pois em “Jorge” Você devia começar a desconfiar até do Santo, que colocou esse homem no seu caminho. Escuta o que eu to te falando... Esse homem tá na farra. Gastando o dinheiro que ele nem tem.

VIRGÍNIA – Saiu pra procurar emprego!

SHIRLEY – Emprego, Virgínia? Desde quando se procura emprego essas horas? E outra, cadê o violão? Por acaso ele foi fazer serenata pro patrão?

Virgínia levanta incrédula do sofá e sonda o apartamento em busca do violão de Jorge. Ela não encontra. Leva a mão ao rosto numa tristeza tensa.

VIRGÍNIA – Ai, Jorge... O violão.

Banda toca “Virgínia”

Não penses que me enganas,
pois em outras camas eu sei que estas.
E nos bordeis tantas “damas”
atendem-te prontas como ao “capataz”.

Em meu nome você nunca deu nada demais.
Pensei te conhecer de traz pra frente e de frente pra traz.

Seco murcho magro descarnado de amor.
Parco turvo opaco, escasso de sabor.
Austero áspero líbero do mundo és assim.
E ainda despoja a ternura do pouco que sobra de mim.




CENA 4

No bar de Ubaldo e Souza; a garçonete está junto à mesa anotando um pedido. Ubaldo vasculha o cardápio enquanto pede. Os dois já estão bem bêbados.

UBALDO – Com muito gelo e pouca água. Traz também uma porçãozinha daquele amendoim com alho. Com mais alho que amendoim. Opa! Traz esse escondidinho de jabá também, e... Acho que é isso. E aí Souza? Não quer nada?

SOUZA – Quero que você pare de gastar minha grana. Porra, Salomé. Quer me falir?

UBALDO – Relaxa, Souza. Você tem cartão de crédito.

SOUZA – Mas eu pago o cartão de crédito com dinheiro! E além do mais... Você também tem.

UBALDO – Não tenho mais... Eu cancelei.

SOUZA – Ué? Cancelou por quê?

UBALDO – Esse negócio de cartão te faz escravo da prestadora de crédito. É foda, cara.

SOUZA – E você quer se alforriar as minhas custas!?

UBALDO – Quê isso, Bicho... Isso é jeito de falar com seu camarada? Você não disse que dinheiro não é tudo? Seu livro me inspirou. Se inspira também.

SOUZA – Você é muito cara de pau mesmo...

UBALDO – Já que você faz tanta questão de ser muquirana... Quando a fatura do cartão chegar eu ajudo a pagar.

SOUZA – E vai tirar dinheiro de onde?

UBALDO – Do meu livro ué!

SOUZA – E você vai convencer seu editor a publicar, imprimir, distribuir, vender o livro, tudo isso em menos de um mês?

UBALDO – Mas você é muito agourento mesmo hein, Souza. Sujeitinho mesquinho. Confia um pouco, Bicho.

SOUZA – ... (Cara de “ai meu saco”)

UBALDO – Você está assim descrente de meu sucesso porque ainda não lhe contei sobre o roubo.

SOUZA – Roubo? Você roubou quem?

UBALDO – Não, sua besta! O roubo da história do livro.

SOUZA – Ah tá...


CENA 5

Sala de interrogatório. O delegado está apoiado na mesa, encarando o meliante, que está algemado com as mãos para trás da cadeira onde está sentado. Ele agora já está de olho roxo

MELIANTE – Não falo nada sem a presença do meu advogado.

DELEGADO – Você não tem advogado, porra.

MELIANTE – É... Sim... Bem... Mas nesse caso, o Estado tem que me oferecer defensoria pública. Conheço meus direitos. E não falo nada sem a presença de um advogado.

DELEGADO – Advogado!? Você quer um advogado? Não seja por isso. João Pequeno (faz sinal ao policial “armário” que guardava a porta); advoga o meliante.

João Pequeno dá uma gravata no Meliante enforcando-o até quase sufocá-lo.

DELEGADO – Tá achando que tá na gringa é? Filme de holliwood? Aqui a chapa é quente, o buraco é mais em baixo, e cobra fuma sem filtro. Seu veado. Tua ficha já não lhe ajuda; é melhor tu começar a me ajudar. Senão, vou deixar o João Pequeno, ai, te ajudar. Tá sacando? Não tô nem um pouco afim de ficar muito tempo olhando pra essa tua cara nojenta. Então, começa a canta essa história. Que quero toca um puteiro ainda hoje.

João Pequeno afrouxa a gravata, mas dá um brusco tapa na nuca do Meliante

J. PEQUENO – Vai, pau no cu. O delegado tá com pressa. Começa a fala.

DELEGADO – Essa parada toda foi encomendada, não foi?

MELIANTE – (esfregando o pescoço, sentindo muita dor) Foi!

DELEGADO – Quer saber como você rodou? Fomos nós que encomendamos. Estávamos na sua cola há uma cara... Você caiu feito pato.

MELIANTE – É, mas pelo jeito a operação de vocês não deu muito certo...

João Pequeno dá outro tapa no Meliante

J. PEQUENO – Só fala quando for mandado falar, pau no cu.

DELEGADO – Você se acha espertão né? Quero saber dos seus cúmplices!

MELIANTE – Trabalho sozinho.

Delegado levanta bruscamente, atirando com seu movimento a cadeira na qual estava sentado. Ele pega o Meliante pelos colarinhos.

DELEGADO – Claro que tem, seu pau no cu. Tá achando que somos trouxas? Que não iríamos sacar que a maleta que estava com você na hora do flagrante não era a mesma que implantamos os diamantes?

MELIANTE – Nem sabia disso. Fiz como fui instruído a fazer: Entrega às dez horas. Naquele boteco, que por sinal. Era bem fuleiro. A polícia não tem o mínimo de bom gosto.

O delegado bate a cabeça do meliante contra a mesa.

DELEGADO – Filho duma puta. Cadê a maleta certa? Tem uma bomba nessa aí num tem?

Delegado dá um tapa no meliante

DELEGADO – O esquadrão tá trabalhando na maleta. Se tiver uma bomba nessa porra. Ai tu vai ver o que é estar fudido, seu pau no cu.

MELIANTE – Não sei porra nenhuma de bomba. Fiz tudo que o suposto (dá ênfase em ‘suposto’ apontando com a cabeça para o delegado) comprador mandou fazer. Fui até o boteco que me mandaram, caralho. Foi isso que aconteceu.

DELEGADO – E porque saiu de lá antes da entrega?

MELIANTE – Você sabe muito bem por que...

DELEGADO – Refresca minha memória então, seu pau no cu. Quero ouvir da tua boca.

CENA 6

No quarto dos cocaineiros; Jorge acaba de cheirar uma carreira, se curva de volta para a eretilidade e diz:

JORGE – Bem fuleiro. Naquela noite fui afogar as mágoas no boteco mais fulero que eu conhecia. Não foi que nem hoje. Hoje, na real, falei pra ela que ia procurar trampo. Mas foda-se. Ela não entende minhas necessidades. Eu preciso extrapolar alguns limites de vez em quando. Senão... Fico doido. Saca, eu até formulei uma viagem pra descrever o que eu sinto. É tipo assim: Ao passo que tenho o que não quero, um vazio corrompe o ser que imagino que sou. Não sabendo o que quero, o que chamo vida corrompe o ser que realmente sou, a ponto de fazer esquecer a diferença entre ser e estar.

PADILHA – CARALHO... Você é poeta, Jorge.

JORGE – Mas é bem isso que eu sinto, Padilha... Vejo um mundo onde eu não estou. Este mundo que vende todos, e todos compram todo mundo. Vejo músicas dizendo: “Você quer um pedaço de mim?” Vejo centenas de produtos me rodeando com uma atração fudida. E, quase ninguém escapa dessa porra dessa atração. O Ser Humano não é mais nada por si; por si, você só é o que você tem; ou o que você “Pode”. O que você tem são coisas que tem seu valor diretamente e proporcionalmente ligados em relação a quantas pessoas não possuem a porra desse Ben. Poder, é ter condição de comprar os Bens que poucos têm condição de comprar. Esse mundo tá de cabeça pra baixo, mano. É ridículo, mano. Tudo ao contrário.

PADILHA – Tá... Mas sem filosofar. O que isso tem haver com sua mina?

JORGE – Tudo! Tudo tem haver com tudo. Além de toda essa merda que eu vejo no mundo. A pentelha não me entende, cara. Fica me espezinhando o tempo todo. Acredita que outro dia veio me encher o saco porque tomei leite condensado direto da lata!? Porra! Vai tomar no cu...

PADILHA – E você tomou leite condensado direto da lata? Porra... Mó mancada, cara...

JORGE – Ah, Padilha. Vai tomo no cu você também, vai. O ponto não é esse...

PADILHA – Mas o que rolo. Que você não chega nunca no importante da história? Pára de brizar. Não to entendendo mais porra nenhuma. Você foi pro boteco, depois da treta com sua mina? É isso?

JORGE – Exatamente isso... Peguei meu violão, as partituras, e fui pra noite.

Banda toca “Sopra”

Talvez esta noite pegue o violão.
Saia bebendo e fazendo um som.

Só pra desbaratinar de você.
Esquecer que poderia estar bem melhor.

Talvez toda noite se torne maçante;
Tão pouco estarei em um restaurante.

Tendo de agüentar você.
Tendo de conversar com você;
concordar com coisas que nunca concordei.
Mas concordei.







CENA 7


Bar de Ubaldo e Souza. Souza não está à mesa. Ubaldo está debruçado sobre os braços apoiando a cabeça na mesa. Souza volta.


SOUZA – Ô, Salomé. Capotou?

UBALDO – Caralho, Souza... Que demora da porra.

SOUZA – O banheiro tava lotado. E... Quê que é isso aqui (Souza pega um copinho de tequila que estava na mesa)? Porra, você pediu, uma tequila?

UBALDO – Uma não, duas (Ubaldo faz sinal à garçonete que traz outro copo). Pensou que eu iria esquecer do amigo?

SOUZA – Mas eu não bebo tequila, caralho.

UBALDO – Putz, É mesmo... Tinha esquecido. Dá aqui então vai. (Ubaldo vira a tequila num gole só)

SOUZA – Não dá pra acreditar na sua cara de pau.

UBALDO – Onde eu tinha parado mesmo?

SOUZA – O Jorge estava contando suas crises existenciais – que mais parecem as suas (referindo-se a Ubaldo) – e dizendo que saiu para beber e tocar violão.

UBALDO – É isso aí. Mas nesse momento voltamos para um ponto comum que faz a ponte da história.

SOUZA – Faz a ponte então, caralho.

CENA 8

Sala de interrogatório. O delegado acende um cigarro e recosta na cadeira.

MELIANTE – Foi aquele arranca rabo da porra. Também, vou te contar viu. De onde você tiraram a idéia de marcar a entrega num bar daqueles? Ainda em dia de clássico Palmeiras e Corinthians? Eu devia ter desconfiado que só a polícia podia ter um idéia de giríco dessas...

João pequeno dá um soco estilo ‘marretada’ na cabeça do Meliante

J. PEQUENO – Você tá abusando da sua sorte...

DELEGADO – E você não acha nada conveniente?

MELIANTE – O quê conveniente?

DELEGADO – Essa briga.

MELIANTE – Quem devia de ter previsto que isso podia acontecer eram vocês. Eu não tenho nada com isso. Nem nunca tinha visto aquele boteco.

DELEGADO – Mentira. Foi tudo armação sua. Quando o esquadrão desarmar a bomba da maleta. Aí você vai estar realmente fodido.

MELIANTE – Já disse, não sei porra nenhuma de bomba, cara.

DELEGADO – Você vai ser obrigado a entregar seus cúmplices. E vamos recuperar esses diamantes. Nem que eu tenha que arrancar seus dentes um por um dessa sua boca fedida.

MELIANTE – Acho que vocês deviam era dar uma olhadinha melhor nessa maleta. Vai ver com a briga ela ficou um pouco suja e você tão achando que é outra. Alguém deve ter pisado nela quando foi chutada, ou algo assim. O esquadrão anti-bombas vai abrir a maleta e encontrar os diamantes todos lá. E sua cara vai no chão.

Delegado dá um soco na boca do Meliante.

DELEGADO – Vamos ver a cara de quem vai no chão primeiro.

João Pequeno se aproxima a luz baixa.

CENA 9

No apartamento de Virgínia e Shirley. Virgínia está chorando e Shirley a está consolado

SHIRLEY – Eu sabia. Eu te disse. Avisei, Todos são iguais. Não valem o que comem. E pior ainda os que não trabalham. E os sonhadores? Raça de desocupados. Músicos então... São a pior espécie: Usam de desculpa o esforço que fizeram pra aprender a tocar pra nunca trabalhar num trabalho decente. Bando de vagabundos. Ainda que o Jorge não inventou de fazer teatro... Mas melhor se separar logo, enquanto ainda não engravidou, que esse tipo de vagabundo, não tarda, sobe num palco.

VIRGÍNIA – Ai, minha irmã... Que faço eu da vida sem Jorge? Nem lembro mais como é não ser casada.

SHIRLEY – Arruma um universitário saradão, filho de juiz. Que te banque e te coma. Esses que só te comem... São os que te deixam sem comer.

VIRGÍNIA – Tô falando sério, Shirley...

SHIRLEY – Eu também minha querida. Você há de convir que esse safado não lhe dá valor. Esqueceu que ele disse que ia procurar emprego e não voltou até agora? E que ainda por cima levou o violão? Quer prova maior de que ele está te enganando?

VIRGÍNIA – É verdade. Mas, o que eu posso fazer? Sou casada com Jorge.

SHIRLEY – Você é acostumada com ele, isso sim. Você não casaram se amando! Casaram porque nenhum dos dois agüentava mais morar na casa dos pais. To mentindo?

VIRGÍNIA – Não, mas... Eu aprendi a gostar dele...

SHIRLEY – Se aprendeu a gostar, aprende também a desgostar. Vem. Vamos pra minha casa. Depois você manda os papeis do divórcio e busca essa meia dúzia de coisa que você tem aqui.

VIRGÍNIA – Não! Não posso sair assim.

SHIRLEY – Pode sim. (ela levanta puxando a irmã pelo braço e arrastando-a em direção a porta), e vai ser agora.

VIRGÍNIA – Mas e o Jorge?

SHIRLEY – Ele que se foda. Tá te enganando, caralho.

VIRGINÍA – É.. sei, mas... Então me deixa pelo menos deixar um bilhete. Também não posso simplesmente sumir.

SHIRLEY – E ele pode?

VIRGÍNIA – Dois minutos...

SHIRLEY – Aí meu saco, viu... Tá bom. Mas seja bem direta e cruel.

VIRGÍNIA – Ai, Jorge...

Banda toca “Carta para um amado Falastrão”

Nem tudo na vida são rosas,
nem todas histórias são versos e prosas.
Nem tudo é amor.
Quase nada é amor.

Mas quero dizer que te amo,
e o que quero dizer:
é que quero dizer que te amo,
não só por dizer.

Sonha o dia,
enquanto noite.
Habita a morte,
durante a vida
Tropeçando de bar em bar;
é luxo tê-lo para o jantar.

Não lhe faço sala,
não mais me inclino a sofrer.

Nem vou dizer que te amo.
E o que quero dizer:
É que meu amor nesses anos.
Mereceu mais que você.





CENA 10

Quarto de Jorge e Padilha. Padilha está acabando de cheirar uma carreira enquanto Jorge fala.

JORGE – Foi das bravas.

PADILHA – Ôloco... Mas como foi?

JORGE – Bem... Eu estava tomando conhaque com água tônica. Meu violão estava em pé do meu lado; e apareceram dois palmeirenses.

PADILHA – Tava passando algum jogo?

JORGE – Tava rolando o clássico: Corinthians e Palmeiras, mano. Pior cara, que eu nem tinha me ligado, mas o bar estava forrado de palmeirenses; mas saca, nem percebi, e esses palmeirenses do meu lado... Ah, Mano, mas esses caras começaram a falar bosta do meu lado. E metendo o pau no Corinthians, e tirando onda de corintiano; e eu na minha. E corintiano isso, e corintiano aquilo. E Corinthians cai pra segunda, Corinthians num sei o que lá. Mas aí cara... Aí os veados foram longe demais... Começaram a cantar o hino, do meu lado, e os filhos da puta desataram a fazer uma paródia: “Salve o Corinthians/da segunda divisão/Eternamente/Freguês do meu verdão/. Aí num deu pra segurar. Virei pro cara e lancei: “Você tem alguma coisa contra corintiano?” “Pois eu sou corintiano!”“ E aí!?”. Meu amigo. Àquele bar fecho um silêncio. Virou todo mundo pro meu lado, me encarando com cara de ‘pega pra capa’. O purtuga viu que o tempo ia fecha, e ‘vlupt’, me puxou pra trás do balcão. Começou a voar cadeira pra todo lado, tacaram o meu outro violão longe e ele espatifo na parede. Pegaram a maletinha de partituras e lançaram longe também. Foi uma desgracera... Fui me rastejando pelo meio da briga. Avistei , a pasta de partituras. Peguei. E corri vazado.

PADILHA – Que viajem hein, cara.

JORGE – O melhor da viagem ainda está por vir...


CENA 11

Sala de interrogatório

MELIANTE – Ninguém via mais nada. Foi cadeira pra todo lado. A primeira que voou foi a que eu estava sentado. Um palmeirense gigante que mais parecia um skinhead arrancou ela debaixo de mim e atirou em direção ao balcão. Eu cai sentado. E quando vi. A maleta já tinha sumido. Comecei a rastejar pelo meio da briga avistei a pasta Peguei. E corri vazado. Vocês precisam assumir a possibilidade de essa maleta ser a mesma, só que danificada.

DELEGADO – Você deve me achar com cara de otário, né. Ou então acha que é muito esperto. Saquei direitinho seu plano: Você queria sacanear o comprador. Armou uma bomba dentro desta maleta enquanto seu cúmplice fugia com a maleta original onde estão os diamantes.

MELIANTE – Você tá viajando na maionese.

João Pequeno dá outro soco-marreta no Meliante

J. PEQUENO – Respeita a autoridade.

Nesse momento, um homem vestido de esquadrão anti-bomba entra na sala. Ele cochicha ao ouvido do delegado.

DELEGADO – A há... Te pegamos, seu pau no cu (apontando energicamente para o Meliante) Vocês são mais burros do que eu pensei. Deixaram na maleta uma pasta com nome e endereço.

MELIANTE – Do que vocês estão falando.

DELEGADO – Puxamos o nome e o babaca tem até passagem por tráfico de drogas. Agora vocês estão fudidos.

Os policiais partem correndo para fora da sala de interrogatório deixando o meliante algemado a cadeira.

MELIANTE – Ei... Ei... E eu? Ou... Caralho. Esse policiais são todos uns loucos...

A luz baixa devagar.


CENA 12


Quarto de Jorge e Padilha

PADILHA – Caralho, bicho. Mas que sorte.

JORGE – E não é.

PADILHA – Você já sabe quanto vale?

JORGE – Não, sei nada. Mas deve valer uma nota preta. Não são muito grandes. São tipo fubécas. Mas tem uma porrada de diamantes.

PADILHA – Nossa, cara. Que loco... Como é possível?

JORGE – Sei lá, mano. Acho que deus resolveu salvar minha vida. Só que na confusão toda eu acabei que perdi sua maleta de partituras.

PADILHA – Foda-se, cara. Agora você vai poder comprar um milhão delas.

JORGE – Á grana (Jorge leva um canudo de cheirar cocaína buscando um brinde de padilha. Padilha retribui brindando com sua nota enrolada em formato cilíndrico)

PADILHA – Á grana (e ambos se debruçam sobre o violão para cheirar outra carreira de cocaína). Mas diga lá, Jorge. E sua mulher? Você contou pra ela?

JORGE – Claro que não. Aquela vaca que se foda.

PADILHA – Você não vai dividir com ela?

JORGE – Tá loco? Vou deixar essa biscate aqui e vou vazar pros EUA. Mas... Pra não dizer que ela não teve contato nenhum com os diamantes. Escondi eles na moldura do nosso quadro de casamento. E isso, é o mais próximo que aquela desgraçada vai chegar da minha riqueza.

PADILHA – É assim que se fala my brother. Essa noite então. A boca tá fechada, e a festa é só pra nóis comemorá.

Padilha despeja sobre o violão centenas de cápsulas de cocaína que estavam em um saco. Os dois comemoram abraçando varias delas.


Banda toca “MaisValeMaisValia”


Compram sua pobreza
Não a sua opinião
Sua audiência
Não a sua atenção


Doses distorcidas de amor
Vendem mais cerveja que o calor
Que o calor....

Televisores de dois milhões de canais...

Ostentação do que digamos
Não precisamos e queremos
E mais vale a mais-valia
E como consumidor já dizia:
Somos o que comemos

E vendem a alma para o diabo
Em busca de um carro novo importado
Novo e importado...
Dos States

E como o usurpador já dizia:
Mais vale a mais-valia


CENA 13

Apartamento de Virgínia e Shirley. A sala está vazia. Até que a porta é aberta bruscamente. É Virginia, que em seu encalço tem Shirley.

VIRGÍNIA – Não. Eu não posso...

SHIRLEY – Pode sim. Vamos logo sua besta.

VIRGÍNIA – Ai, Shirley. Eu estou tão confusa.

SHIRLEY – Que mané confusa. Você sabe muito bem que aquele safado tá cagando pra você.

VIRGÍNIA – Mas eu sou casada, Shirley. Meu sonho sempre foi casar...

SHIRLEY – Porra, leva uma lembrança desse casamento desastroso então, e vamos logo.
VIRGÍNIA – Ai, Shirley, mas o quê?

SHIRLEY – Sei lá... Pega qualquer merda, ai...

VIRGÍNIA – Então... Vou levar a recordação do único dia em que esse casamento realmente foi feliz.

Virgínia vai até o quadro de casamento que ocupa a parede da sala. O põe a tira colo e parte com a irmã, aos prantos.

SHIRLEY – Você é muito melodramática mesmo, viu. Tá loco. (saindo do apartamento). Nossa. A moldura desse quadro é muito bonita pra ter a foto desse traste nela...


CENA 14

Quarto de Jorge e Padilha

JORGE – É, mano... Agora as coisas vão dar certo pra mim. Vou virar magnata norte americano.

PADILHA – Não vai esquecer dos brothers hein!

JORGE – Claro que não, mano. Você é meu irmão. Juro que te pago tudo que te devo e mais um pouco.

PADILHA – É, e não é pouco não, viu. Se fosse qualquer outro cliente, teria de ter apagado. Mas você eu considero.

JORGE – É nóis, Padilha. É nóis...

PADILHA – Vou abrir uma vodka pra brindarmos de verdade agora. (ele pega uma garrafa de vodka; abre, enche dois copos e brindam).

JORGE – A minha rápida ascensão no mercado financeiro.

PADILHA – Aos paraísos fiscais.

JORGE – As mulheres abandonadas.

PADILHA – E as gostosas que agora iremos comer no banco de trás de limusine.

JORGE – Assim que comprar minha mansão na Califórnia. Te mando buscar aqui num jatinho fretado pra passarmos uma temporada cheirando na piscina.

PADILHA – Opa... Aí sim hein, brother. Porra, isso pede um som. Vamos toca ‘cocaine’ do Eric Clapton.

JORGE – Putz. Não sei essa.

PADILHA – Não, mas... Relaxa tem aqui na minha maletinha de partituras... Onde é que está...

JORGE – Tá pirando? Esqueceu que eu perdi? E que foi graças a ela que agora somos empresários emergentes. (eles fazem silêncio por um segundo e caem na garbalhada)

Nesse momento a porta é arrombada. Bombas de fumaça são soltadas pela polícia que invadiu, tiros são ouvidos; quebradeira do cenário, aos gritos: – “Vai, vai, vai.” – “ Polícia; nem se coça.” – “Caiu casa” – “Perdeu; perdeu”.


Black-out. Banda toca “Porto Seguro”

Não!
Há porto seguro,
Vida atrás do muro
Hora de parar de sofrer.

Já foi um homem bom
Nota certa noutro tom
Porém nunca acreditou

Correu atrás de ser
O melhor e vencer
Julgou o que não interessa

Pílula para aumentar a pressa.

E se fosse ao menos capaz de suportar
O reflexo das manhãs e quem sabe acreditar.

Breque na banda/Black-out

EPÍLOGO DO EPÍLOGO

Bar de Ubaldo E Souza

SOUZA – Caralho, Ubaldo. Que Sensacional. Esse entrelaçamento da história é meio á-lá Tarantino, hein... Vai ser sucesso.

UBALDO – Tá vendo só. Não te disse que ajudava a pagar essa conta com o meu sucesso.

SOUZA – Não cheguemos a tanto também né...

UBALDO – A propósito, Souza. Você não me disse qual era o nome do seu livro.

SOUZA – Ah... Esse é o ponto alto do livro. É um nome fortíssimo. É um sinônimo de urgência...

UBALDO – Do meu também. Por acaso, é também sinônimo de agitação!?

SOUZA – De muita pressa!?

UBALDO – De grande afã?!

SOUZA – Uma roda-viva!?

UBALDO/SOUZA – (em uníssono) AZÁFAMA!

UBALDO – Não acredito!

SOUZA – Que demos o mesmo nome aos nossos livros!

UBALDO – E agora? Quem fica com o nome?

SOUZA – Putz, agora fodeu.. Bem, como somos muito amigos, não vamos brigar. vamos tirar na moeda.

UBALDO – Boa! Eu sou cara.

SOUZA – Coroa então, né.

A moeda é jogada e cai dentro de um copo cheio de bebida.

UBALDO – Putz!

SOUZA – Dá pra ver o que caiu?

UBALDO – Não!

SOUZA – E agora?

UBALDO – Vamos no par ou impar.

SOUZA – Par!

UBALDO – Impar!

Os dois colocam zero e entram numa discussão.

SOUZA – Opa! Zero é par.

UBALDO – Como par? Como a ausência de números pode ser par?

SOUZA – Ora, vem antes de um número impar, logo é par. Todo impar é intercalado por um número par. Tendo assim, que obrigatoriamente começar por um número par. No caso o zero.

UBALDO – Não me vem com essa, não. Nem fodendo. Pra mim zero no par-ou-impar sempre foi empate.

SOUZA – Nem fodendo!

UBALDO – Claro que sim...

SOUZA – Quer tirar então no braço de ferro?


UBALDO – Bem... não... Sabe... Meu braço tá meio dolorido... Eu sou canhoto você é destro.Tenho um idéia melhor! E se escrevêssemos esse livro a quatro mãos?

SOUZA – É... Não é má idéia... Mas... Agora?

UBALDO – Não! Acho que não tem tanta urgência.

SOUZA – Tem razão. Agora causaria muita agitação.

UBALDO – Pra quê tanta pressa?

SOUZA – Ou um grande afã

UBALDO – Nessa roda-viva.

SOUZA/UBALDO – (EM UNÍSSONO) Nessa AZÁFAMA.

Os dois se levantam, a garçonete traz o cartão de crédito de volta para Souza

GARÇONETE – Seu cartão de crédito foi recusado! Tem outra forma de pagamento?

Os dois se entreolham, tardam por um segundo. Souza toma o cartão da mão da garçonete, e ambos saem correndo do bar.

Black-out e entra a banda enquanto os atores voltam ao palco para o agradecimento.

Banda toca “Azáfama” somente instrumental.

A luz baixa gradualmente até a escuridão


FIM

TicTac

Tic! Grita o relógio na minha orelha.
Tac! Tarda.
Tic! Recomeça meu pesar.
Tac! Tarda.
Tic! Não sei se acredito.
Tac! Tarda.
Tic! Desconfio.
Tac! Tarda.
Tic! O som que quero.
Tac! Tarda.
Tic! Triiim!
Tac! Tarda?
Tic! Engano.
Tac! Tarda!
Tic!
Tac!
Tic!
Tac!
BAM!
Não tardas mais...

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Máximas de KZ

"O Nervosismo é a calma levada às últimas conseqüências"

domingo, 11 de janeiro de 2009

This Is Your Life

And you open the door and you step inside
We're inside our hearts
Now imagine your pain as a white ball of healing light
That's right, your pain
The pain itself is a white ball of healing light
I don't think so
This is your life, good to the last drop
Doesn't get any better than this
This is your life and it's ending one minute at a time
This isn't a seminar, this isn't a weekend retreat
Where you are now you can't even imagine what the bottom will be like
Only after disaster can we be resurrected
It's only after you've lost everything that you're free to do anything
Nothing is static, everything is appaling, everything is falling apart
This is your life, this is your life, this is your life, this is your life
Doesn't get any better than this
This is your life, this is your life, this is your life, this is your life
And it and it's ending one-minute at a time
You are not a beautiful and unique snowflake
You are the same decaying organic matter as everything else
We are all part of the same compost heap
We are the all singing, all dancing, crap of the world
You are not your bank account
You are not the clothes you wear
You are not the contents of your wallet
You are not your bowel cancer
You are not your grande latte
You are not the car you drive
You are not your fucking khaki's
You have to give up, you have to give up
You have to realize that someday you will die
Until you know that, you are useless
I say let me never be complete
I say may I never be content
I say deliver me from Swedish furniture
I say deliver me from clever arts
I say deliver me from clear skin and perfect teeth
I say you have to give up
I say evolve, and let the chips fall where they may
This is your life, this is your life, this is your life, this is your life
Doesn't get any better than this
This is your life, this is your life, this is your life, this is your life
And it and it's ending one-minute at a time
You have to give up, you have to give up
I want you to hit me as hard as you can
I want you to hit me as hard as you can
Welcome to Fight Club
If this is your first night, you have to fight

SUBHUMANO

Uma foto pendia na parede de papelão. Apesar de seu tamanho, dez por quinze, tinha peso de jóia. Maciel a fitava deslumbrado dia após dia, como se representasse uma redenção; lembranças de uma vida melhor. Uma vida passada.
A chuva castigava o barraco instalado sob a ponte. O papelão não agüentaria muito. Mas Maciel preocupava-se com a foto; a prova de que já foi humano. Suas parcas posses restringiam-se a um botijão de gás, uma panela e uma espiriteira; quase um magnata, quando comparado aos seus vizinhos; que normalmente não perduravam em tal designação. Poucos suportavam o cheiro do rio como Maciel. Oh, sim, o rio... Seu cheiro representava o que pior existia nas pessoas da superfície – como Maciel chamava os moradores da cidade que respirava sobre a ponte – , seus restos fisiológicos formavam a varanda da humilde morada de Maciel, que noites afora imaginava se as pessoas da superfície suportariam a si mesmas se soubessem a verdade que ocupava suas entranhas: eram fétidas.
A chuva que agora atacava Maciel e seu barraco vinha com a promessa de derrubá-lo. Maciel não se mexia, deitado no chão de terra que ladrilhava o interior de sua “toca”, Maciel olhava para a foto e lacrimejava. Percebeu que sua dignidade jamais seria resgatada, sua vida anterior jamais seria retomada. A superfície não o acolheria novamente jamais. Percebeu que morreria naquela noite.
Num súbito de dor e raiva, Maciel ergueu-se no interior da cabana, rasgando-lhe o teto. Como a ave que arrebenta o ovo, Maciel renascia do lixo. Mas sabia, que morreria. O rio subia cada vez mais, há tempos não acontecia do rio transbordar, e quando acontecia, noutros tempos, Maciel ainda guardava a esperança. Guardava pendurada na parede de papelão.
Maciel picou a foto. E a engoliu. Para que ninguém ao o encontrar morto sob a ponte, soubesse que ele já esteve na superfície. Engoliu a foto para que as lembranças da superfície se juntassem a única coisa que o fazia igual às pessoas que transitavam lépidas com seus telefones celulares ao ouvido, e suas importantes maletas pendentes nas suas mãos: Guardou suas memórias em suas entranhas: fétidas.