sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Máximas de KZ

A esperança é a última que morre, porque os últimos serão os primeiros.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

segunda-feira, 7 de junho de 2010

quarta-feira, 12 de maio de 2010

25032010

E a felicidade lhe incomoda. A felicidade sempre incomoda quem não a tem, como toda ausência incomoda, fazendo jus a sua especificidade. E todos lhe poupam, como todos poupam os inferiores, sob o julgo da pena cabível aos desafortunados. Redenção e benevolência é o nome dado a essa atitude. Medíocre; mesquinha e hipócrita. Fazendo parecer que é para os outros, o que na verdade é para si mesmo.

domingo, 25 de abril de 2010

3 Contos do Excêntrico Impraticável

Alguns desses contos já constam nesse blog. No entanto, incluí, agora, a versão revisada que inscrevi no concurso literário de São Bernardo do Campo.
KZ
1 – O Violonista

Noite. Poucas estrelas ocupavam o céu e a lua estava tímida, escondendo-se por de trás das nuvens, como a mulher encabulada que se veste de lençóis em situação inusitada.
Sem a luz que a lua tomava emprestada do sol, a noite era um breu. Sua escuridão remetia a alegria pérfida de quando, sem o fulgor do sorriso amado, tomamos o calor alheio. E por saciação e lascívia, acatamos. Julgando comum almejar a inocência como instrumento da vontade.
O caso não era, no entanto, o da felonia física. Sentado à mesa, Ele enamorava-se de um objeto inanimado que ocupava o canto do palco. A porta aberta, do bar onde estava, deixava a noite entrar. E ela entrava sem pedir licença, soprando sua briza fria e primaveril. Foi num desses alentos atravessados, desses que sobem pelas canelas, arrepiando no pescoço, que o dito Objeto foi ao chão. E era mulher; como já dizia o poeta, era a mulher ideal: ... nem grande, nem pequena; de pescoço alongado, ombros redondos e suaves, cintura fina e ancas plenas; cultivada mas sem jactância; relutante em exibir-se, a não ser pela mão daquele que a ama ... Seduzia como mulher. Foi assim, que naquele momento, ficou clara a atração incontrolável que exerciam um ao outro.
Os médicos o haviam proibido... Não! Na verdade... Recomendado... Pra ser mais exato, o alertaram: ‘Você não pode mais tocar violão, os danos serão irreparáveis’. E nunca a vida o traíra de forma tão desumana.
Ao ver tal preciosidade, estirada, jazente e ressoante no chão, não teve dúvidas. Tomou-o em suas mãos... E pôs-se a tocar intensamente. Como se um espírito o tivesse tomado. Ou com a fartura de um viciado que encontra a droga... Tocou.
Os músicos faziam seu intervalo; encontravam-se no balcão, degustando suas biritas. E ainda que fosse de praxe não deixar os clientes subirem ao palco e, tão pouco, tocar os instrumentos. Consentiram, diante de tamanha beleza e melodia.
As notas saltavam lépidas de sua mão esquerda. Os dedilhados dançavam corda por corda numa cadência sublime e inimaginável em sua mão direita. O bar fechou silêncio ouvindo-o tocar. Ninguém identificara a música, mas era a mais bela de todas as músicas. E todos sabiam, ainda que tacitamente, que aquela seria a única vez que a ouviriam em suas vidas.
Ele estava em transe. As escalas surgiam cada vez mais intensas. Complexas. Sua tez tomava um ar obcecado, lúdico. Suas veias pulsavam quase que percusivamente. Sua cabeça começava a tremer. Seus olhos se reviravam. Sua boca abria e fechava buscando o fôlego inalcançável do ritmo. Seu mundo se acabava de tom em tom, numa contagem regressiva: Preparar para evacuar a alma em: 5, 4, 3, 2...
Ombro.
Uma mão, surgida da infinita escuridão ao seu redor, tocou-lhe o ombro.

- Senhor! O bar já vai fechar!


Levantou a cabeça que apoiava em seus braços debruçados sobre a mesa. Olhou para o palco. E não havia palco. Olhou o garçom, que lhe fitava numa mescla de repreendimento e pena; pagou a conta. Pegou seu chapéu. Virou seu ultimo gole de conhaque. Apanhou sua bengala... E mancou pela noite fria rumo a sua casa. Pelo caminho, rememorava seu tempo. Onde por paixão pela música, abandonou tudo. Assistiu seus antigos companheiros de banda evoluir a um futuro promissor em diversas carreiras. Manteve-se relutante. E pouco a pouco. Sua relutância, converteu-se em desespero. E o desespero, em doença. Fazia vinte anos que ele não tocava em um violão. Assumiu mentalmente que a música era sua doença, seu vício. A condutora de seu fracasso. E que num curto prazo, o conduziria a morte. Nunca houvera sucesso. Nunca houvera talento. Devia ter abandonado a música a tempo, como fizeram seus companheiros. Devia ter constituído família. Ter tido filhos. Ter formado uma vida... Mas não. Seu sonho era maior que a vida. E quando finalmente percebeu que essa vida se esvaia gota a gota em seu suor maldito. E como era maldito... Percebeu, que de sua história, a única coisa ou moral que se podia concluir, é que quem vive em função de sonhos, só é feliz dormindo.

***

2 – A Vida Dele

Recostou a cabeça no travesseiro e concluiu que a vida é ruim. Na cama que não era cama, mas colchão somente, virava de um lado pro outro no corpo que não era seu. No mundo que não era seu. Pensava na vida perfeita que era deveras sua. Imaginava aquele quarto mofado e apertado como uma sátira da realidade. Queria nascer de novo.
Em sua vida de verdade vivia numa grande casa. Uma casa não muito longe da que agora se encontrava. Mas numa vida extremamente distante da que agora vivia...


... Deitado sobre imensa cama, de colchão macio e travesseiros ortopédicos, podia ouvir o som do chuveiro de sua suíte. Era um som firme, de gotas gordas e consistentes. Sua tevê de LCD, quarenta polegadas, instalada na parede à frente, transmitia o futebol; a luta de boxe; o campeonato de golfe... Ele zapeava sem atenção: tantos eram os canais que dificilmente repetia um. O som era proveniente de dois alto falantes embutidos atrás da cama, um pouco acima do grande arranjo de madeira maciça que ornamentava o móvel, além de mais dois alto falantes à frente, acima da tevê, havia ainda um quinto, destinado somente aos graves. O som da televisão, no entanto, era suprimido em sua mente, nesse momento, pelo do chuveiro sendo desligado. Passos molhados foram então ouvidos. Um vento fraco atingiu-lhe os pés; um vento causado pelo girar de toalha que Gabriela fez ao envolver-se na mesma. O ruído do secador começou. Ele desligou a tevê.

- Hoje? Azul ou Pink? – indagou Gabriela da porta do toalete, olhando-o com a complacência do amor e da admiração que se tem pela pessoa que transforma sua vida em algo maravilhoso. Ele não precisou responder, Ela concluiu, por seu olhar, que preferia o azul. Voltou-se para o biombo e vestiu-se de céu.

Ele, ao observá-la, caminhando em direção a cama, concluiu ser o homem mais feliz do mundo: A ceda cobria-lhe os seios nus; adaptava-se por sua cintura como se fosse dela a única cintura para aquela peça. Um shortinho rendado delineava o pequeno pedaço de coxa que cobria. E ela deitou-se ao seu lado... Abraçou-lhe a cintura, recostando a cabeça em seu peito de nadador. Suspirou o ar da felicidade que se sente na plenitude da mesma; colocou sua perna sobre a dele, e apertou-se contra seu tórax.

-Acho que devíamos fazer uma loucura amanhã! – Exclamou Gabriela como quem pede licença para fazer uma travessura. Seus olhos buscaram os dele, acima, e ela sabia, que desse ângulo, Ele jamais lhe negaria coisa qualquer que fosse – Devíamos acordar; tomar um banho juntos; um café da manhã bem reforçado; entrar no carro só com a roupa do corpo; ir até o shooping, comprar tudo que precisamos para a viagem e seguir para Minas.

Não houve palavra. Tacitamente Ele dera a benção aos planos de sua amada. Gabriela lhe beijou o peito nu, um pedaço de cada vez, subindo o caminho do pescoço até a orelha. Colocou-se em seu colo, arqueou-se à sua boca. E retribuiu-lhe a compreensão e o amor que recebia, com mais amor.

Dez da manhã Ele acordara. Gabriela ao seu lado sorria dormindo. Ele levantou-se; calçou seus chinelos; enrolou-se em seu hobby vinho, de detalhes dourados; e caminhou até a cozinha. Inspecionou por um momento os armários em busca do pó de café. Não sabia onde nada estava. Sem Matilde, a empregada, era um estranho naquele ambiente. Não sabia usar metade dos aparelhos domésticos que se arranjavam sobre a colossal bancada de inox. Não conseguiria preparar o café sem a empregada. Pensou que não devia tê-la dispensado para passar o ano novo com seus parentes em Tocantins. Arrependera-se, por um instante, do bônus que dera a ela para compra das passagens; de ônibus, logicamente. Praguejava contra os aparelhos e talheres, quando mãos macias lhe contornaram por baixo dos braços o peito. Tão logo sentiu os seios de Gabriela contra suas costas, sentiu-se calmo novamente.
Gabriela preparava o café enquanto Ele, sentado à mesa, passava cream-cheese nos croissants. Olhando-a de costas, cantarolando à bancada, admirou a silhueta da esposa, exatamente igual nos últimos treze anos. Terminou rápido o trabalho com o cream-cheese, levantou-se e, esquivando os longos cabelos negros, beijou-lhe o pescoço. Gabriela abraçou-lhe a cabeça com uma das mãos, utilizando a outra para servir o café; virou-se, culminando em sua boca. E beijaram-se de lá até a banheira.

Partiram algum tempo depois utilizando o carro de Gabriela, que assumiram ser mais prático devido ao amplo espaço de porta-malas. Seguiram ao shooping. No caminho, discutiram sobre o que ouviriam durante a viagem: optaram por Toquinho e Vinicius de Moraes: o CD que Ele ganhara alguns dias atrás, de Gabriela, juntamente com o violão original utilizado por Toquinho naquele show, na Itália.

No shooping, separaram-se pela primeira vez naquele dia. Ela seguiu para as compras das roupas, malas e presentes; enquanto Ele, seguiu à livraria para colocar em dia sua biblioteca. Hora em vez se telefonavam: era, comumente, Gabriela convocando-o com novas sacolas para serem carregadas até o carro.
Algumas horas e alguns milhares de reais depois estavam na praça de alimentação, provendo-se de alimentos para a viagem. Gabriela, enquanto comia, dissertava sobre itinerário e o hotel que havia reservado para descansarem da viagem antes de chegar à casa de seus pais. Havia feito a reserva pelo celular enquanto comprava; gabava-se ter conseguido tudo online: tanto encontrar o melhor hotel (o qual se desviariam somente alguns quilômetros para pernoitar), quanto reservar o melhor quarto numa época de ano tão difícil.

A viagem seguiu tranquila. O transito na saída de São Paulo não os abatera. Enquanto Ele dirigia, Gabriela arrumava as malas e as compras no banco de trás do carro. Algumas horas depois, já estavam no hotel.
Mandaram trazer para o quarto um Margaux. Brindaram num copo inadequado para o vinho, mas não se abalaram. Jantaram no restaurante do hotel. Voltaram a seus aposentos. E dormiram um bom tempo na varanda, abraçados, assistindo as estrelas que ocupavam cada centímetro do céu.

No outro dia bem cedo, partiram. Gabriela ligava para a irmã, Rafaela, vangloriando-se da loucura que fizera. Ela apresentaria naquele ano o novo namorado à família. Ouvindo de rabo de ouvido, Ele sorriu quando Gabriela tirou sarro dizendo à irmã que “todo ano o ponto alto de encontrá-la era descobrir quem era seu novo acompanhante”. Não demorou, chegaram à casa dos pais.

Tiveram uma recepção calorosa. Gabriela foi puxada pelas primas para que lhes mostrasse os presentes e as roupas novas. Ele, foi levado à sala, onde lhe ofereceram conhaque e um charuto cubano. Seu sogro, lhe guardava na mais alta estima; sua sogra, o considerava um filho. Almoçaram fraternamente naquele dia, enquanto Ele lhes explicava os perigos e benefícios do mundo literário, assim como lhes contava, por alto, qual seria a história de seu novo livro. Concordaram em unanimidade que seria um best-seller.

Naquela noite, vestiam branco. O calendário marcava trinta e um de Dezembro, e o relógio onze e cinqüenta e cinco. Todos se dirigiram para o local mais alto do sítio, de onde poderiam ver de camarote os fogos de artifício na cidade. De mãos dadas, Ele e Gabriela se entreolhavam, memorando mentalmente os anos maravilhosos que passaram juntos. Juraram, cada um em silêncio e para si mesmo, que esses anos durariam para sempre. Contaram em voz alta: cinco, quatro, três dois, um... E todos se abraçaram e desejaram felicidades. Gabriela olhou para Ele, disse com os olhos marejados de lágrimas de felicidade que “o amava mais que a própria vida”. Ele lhe sorriu abertamente, e disse que “se apaixonava por ela todos os dias, desde a primeira vez que a viu passar frente a sua casa”. Os dois se beijaram apaixonadamente, e se abraçaram naquele momento, e por toda a vida.


O relógio batia duas da tarde quando ele abriu os olhos. Olhou para o lado e viu a escrivaninha improvisada com uma mesinha de bar que ocupava o lado de seu colchão inflável. Levantou meio abatido, meio torto... Seguiu à cozinha, e ninguém estava na casa. A pia, repleta de formigas, ostentava um ultimo pedaço de panetone; ele o deixou as formigas. Contou setenta centavos nas moedas que constavam no ‘pote-das-moedas’; deixou-as ao pote. Seguiu pelo quintal de cimento batido, apoiando de vez em quando na parede descascada à sua direita, em direção ao portão. Na rua de terra, frente à sua casa, viu em seu pensamento a garota que vez em nunca passava por ali. Com seus cabelos negros, olhos castanhos escuros que davam a impressão de poder mergulhá-los, boca de lábios sempre rosados que, hora em vez, se entreabriam para recuperar o fôlego da caminhada; corpo do tipo que promete ser lindo por toda a vida. Viu a garota que ele, imaginativamente, batizou de Gabriela. A garota que lhe fazia querer ser um homem melhor.


***


3 - Maquinal

Por algum motivo que não consigo entender, acordo todos os dias as sete em ponto. Sou despertado sempre pelo mesmo sonho: Estou em um hospital, tento preencher desesperadamente uma ficha onde apenas números são colocados de forma aleatória; porém, entendo perfeitamente, naquele momento, a disposição destes números. No sonho, estou com pressa, pois acabei de roubar um caderno de receitas e preciso fugir o mais rápido possível. Quando estou nos últimos números, um médico chama meu nome; engraçado, mas me lembro de tudo estar muito bem planejado. No sonho, o roubo era algo magistral dentro de sua harmonia incoerente. Mas esse é o momento em que algo saiu errado, trêmulo, termino de preencher a ficha, largo no chão, e corro para a saída. O hospital é imenso, um prédio de intermináveis andares, pelos quais desço apressadamente as escadas, me deparando diversas vezes com policiais na direção oposta. Quanto tempo vai levar para que me desmascarem? Pois eu sei que o vão. Quanto tempo vai levar para chegar á saída? Bem... Essa é a terrível incógnita. As escadas são longas e diversas de curvas, eu começo a quase não tocar os pés no chão, desço as escadas agora deslizando sobre os degraus e, nesse momento, meu corpo me trai. Tropeço. Plaino por alguns instantes, e antes mesmo de atingir o chão, já sei que fui descoberto. Quando finalmente me estatelo, a dor é substituída por um susto. Esse que me acorda todas as manhãs. As sete em ponto.
Na cozinha o café de ontem está gelado, claro. Mas é assim que o tomo todas as manhãs. Antes de qualquer coisa, preciso de um gole de café. Acendo um cigarro, e corro pro banheiro. Cago, escovo os dentes, lavo o rosto... Saio. Sete e quinze estou no ponto de ônibus. Não para trabalhar nem qualquer nobre finalidade. Sento-me e a espero passar. Sempre linda, seu perfume sinto do outro lado da rua. Não de forma agressiva como sugere a força da expressão, mas suave como uma tragada de vida, enchendo os pulmões da esperança a muito perdida. Religiosamente almejo sua chegada com o furor de uma criança que espera o brinquedo novo. Mas palavras e gestos são pecados. Eu só a vejo, sinto seu aroma, e ela passa. Com a mesma rapidez de minha vida. Oh Deus, se ao menos eu tivesse coragem... Ou um carro.
Tem um velho sentado ao meu lado agora; chamo de velho mas deve ser mais jovem que eu. Ele normalmente não fica ali. Começo a sentir ciúmes da minha psicose como se o direito de estar ali fosse somente meu, como se aquilo não fosse um ponto de ônibus, mas sim meu oráculo pessoal, em busca de um entendimento que nem eu sei qual é. Um lugar que necessito estar todos os dias e nunca me atrasar um segundo sequer, como se minha vida dependesse diretamente deste ritual e algo terrível fosse acontecer se acaso ele fosse quebrado. Eu sei que não é verdade, mas não tenho coragem de apostar no contrário.

- Que horas são?
- Sete e meia! – Me responde o velho.
- E agora?
- Como assim? – Ele me pergunta com cara de bobo. Ah o tempo... A ilusão de poder controlá-lo nos toma sempre de forma cruel, pois o segundo em que perguntei, acabou um segundo atrás. E assim, o presente é uma constante na qual nunca estaremos.
- Esqueça! Tenha um bom dia, velho.

Levanto-me e saio, atravesso a rua e sigo a minha direita beirando as árvores do parque e ouvindo os pássaros idiotas que cantam sempre fora do tempo, às vezes até gosto deles; mas hoje queria uma espingarda. Não ando muito e chego ao segundo ponto de meu ritual matinal: a padaria. Chego lá e tem um cara esquisito com cara de almofadinha sentado no meu lugar, será que é um complô? Desgraçado... Eu preciso deste lugar. Não vou conseguir comer se não for no meu lugar de sempre. E a propósito... Onde esta a Lucy? Na cozinha? No banheiro? Onde? Bem... Um problema de cada vez. Primeiro preciso recuperar meu lugar.

- Com licença, almofadinha. Por acaso você já terminou o seu café ou vai demorar muito?
- Desculpe! O que você disse?
- Perguntei se você vai ficar ai enrolando para tomar esse café, afim de esperar a hora que eles começam a servir bebidas alcoólicas, ou vai sair logo daí.
- Você é algum tipo de maluco?

Maluco? Será que é isso? O mundo nos bombardeia massivamente com a idéia constante da rotina e quando alguém finalmente resolve segui-la, esse mesmo mundo o rotula de maluco?

- Olha aqui seu almofadinha bêbado, fracassado e sujo. Existem ‘milhares’ de lugares vagos nessa padaria, e você resolve sentar-se bem no meu? Sabe há quanto tempo eu me sento nesse lugar? Você por acaso sabe a importância que tem para mim seguir meu ritual religiosamente da mesma forma? Ah não, você não sabe! Não saberia o significado da palavra importância nem que ele caísse nessa sua cabeça chata; e nem se tivesse capacidade de ficar sóbrio trinta minutos de seu dia, que fosse, você entenderia o significado da palavra importância.

O cara esquisito se levantou, e foi embora. Sentei no meu lugar e esperei Lucy surgir radiante em seu sexy avental manchado de óleo; a toca amarelada pela fumaça constante que vaza dos cigarros alheios... Pedi o que peço todas as manhãs:

- Lucy, quero você!
- E o que mais?
- Um pingado e um pão na chapa! Por favor.


Termino meu café e saio. Como sempre. Preciso seguir para meu próximo ponto: a banca de jornais.
Gosto de olhar as capas das revistas antes de comprar o mesmo jornal que compro todos os dias; e ele realmente é quase que literalmente o mesmo. Tudo é uma enorme repetição. O mundo; as pessoas; as capas das revistas; os atores; as poses fotográficas; as mentiras tabloidianas... Ah... Eu poderia continuar infinitamente. Pego a porcaria do jornal e vou embora.

À volta pra minha casa costumo fazer por um caminho diferente; não gosto de fazer o mesmo caminho duas vezes no mesmo dia. E nunca faço. Passo por duas ruas a mais por conta disso; mas não me importa andar um pouco a mais, contanto que meu esquema diário esteja instável.
Minha casa é pequena: um quarto uma cozinha e um banheiro. Não preciso de mais que isso; e nem quero. Meu quarto tem uma parede com jornais empilhados até o teto em toda sua extensão quadrada. São os jornais dos últimos seis anos, não consigo jogá-los fora; e não jogo. Dos últimos seis anos, porque nem sempre eu fui assim: metódico. Mas desde que aconteceu aquilo... Tão terrível... Não quero falar sobre isso.

É chegada a hora de assistir aquele programa que eu odeio. Aquela mulher insuportável, com suas receitas estúpidas e aquele animal de pelúcia com o qual ela conversa todas as manhãs jurando por Deus que ele está vivo. Que deplorável.
Ela começa com suas piadas sem graça e de repente uma coisa quebra meu esquema: uma dor atinge meu peito como uma facada, um tiro ou qualquer coisa do gênero. É o coração. Isso não acontece todo dia. Logo, não deveria estar acontecendo. Mas está. A dor começa a fazer meu braço esquerdo formigar e penso que devo chamar uma ambulância. Infelizmente não tenho telefone. Se tivesse, correria o risco de ele tocar em horários diferentes todos os dias. Jamais suportaria essa assimetria. A dor chega a um ápice... Insuportável... Insuportável...
... Estabiliza. E então... Vira conforto. Isso é a morte. Não tem como morrer todo dia. Terei de aceitar esta mudança em minha rotina. Nesse momento me lembro de você, meu amor. E fico feliz em saber que sentiu este mesmo conforto que sinto agora; quando aconteceu aquilo... No hospital... As sete em ponto... Tão terrível...

***

quarta-feira, 21 de abril de 2010

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Máximas de KZ

Os relacionamentos dão certo enquanto a realidade não se interpõe. A sinceridade deve ser, então, o melhor instrumento para o controle de natalidade.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Kaze Acústico

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Máximas de KZ

"Sabedoria, hoje, está analogamente equiparada ao ato de carregar um saco de areia no deserto!"

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Campanha (fictícia) "Anuncie Já"













Roteiro Curta metragem - "A Traição"

1-INT. CASA DE GRIEG: QUARTO – DIA

Estamos no quarto de Grieg. É um quarto de casal; temos ao lado da cama um criado-mudo, onde temos um relógio digital.
O relógio marca 10:00. Ao fundo, há um espelho que reflete o relógio pelas costas e Grieg sobre a cama. Nesse momento, estamos fechados no relógio. Ao bater 10:01, damos um zoom in em direção ao espelho, focalizando então Grieg; que está acordado olhando para o relógio.

GRIEG (V.O.)- Passava das dez quando resolvi sair da cama. Na realidade havia acordado algum tempo antes, mas não encontrei ânimo pra levantar.

2 – INT. CASA GRIEG: COZINHA – DIA

Grieg está sentado à mesa. Está claramente abatido e desanimado, enquanto toma café e come um pão a muito custo. Ao seu redor, vemos cenas aceleradas de Madalena sentando-se e levantando-se da mesa. Indo a pia, lavando pratos, falando com Grieg tentando conter o filho pequeno que corre, sobe na cadeira, pula, e etc. A intenção da cena é passar um ambiente caótico ao redor de Grieg que parece estar em outro lugar.

GRIEG (V.O.)- Sabia que encontraria Madalena na cozinha falando pelos cotovelos, o pivete correndo e fazendo bagunça; gritando e chutando; enquanto eu, em meu mal-humor matinal conteria minha vontade na tênue linha entre explosão e indiferença.
Insert de uma cena de Grieg esganando o filho
com Madalena caída inerte aos seus pés. É um
insert rápido que surge somente no momento que ele diz: ‘explosão’. Logo voltamos à cena original, focando agora o rosto de grieg completamente distante.
3 -INT. CASA DE GRIEG: QUARTO – DIA

Grieg ainda está deitado. Estamos fechados em seu rosto.

GRIEG (V.O.)- Por isso hesitei em levantar.

4 -INT. CASA DE GRIEG: QUARTO – DIA

Abrimos o plano e Grieg está sentado na cama. Ele se espreguiça; calça o chinelo e etc. Se levanta.

GRIEG (V.O.)- No entanto, quando percebi a casa vazia, sem ‘Madalenas’ ou ‘Lukinhas’ para infernizar minha manhã, levantei.

5 -INT. CASA DE GRIEG: COZINHA – DIA

Grieg está na pia, nos o vemos pelas costas. Ele apanha a garrafa térmica e vira-se para a câmera. Ele enche um copo com café. Ao mesmo tempo em que isso acontece, ele segura um bilhete que encontrou sobre a pia. Ele devolve a garrafa térmica e começa a ler o bilhete. O Café está gelado e ele vira-se para a pia e gospe.

GRIEG (V.O.)- A primeira coisa que fiz foi cambalear até a cozinha para galgar um gole de café amanhecido; e isso prova que a garrafa térmica não funciona, e que a desgraçada da Madalena não teve o bom senso nem mesmo de me deixar café pronto antes de partir , como dizia seu bilhete:



INSERT FECHADO DO BILHETE

MADALENA (V.O.)- Fui pra casa da minha mãe!Por que você não tenta arrumar um emprego nesse meio tempo? Garanto que isso não vai atrofiar seu tão precioso cérebro...
Com amor: Ma.


6 -INT. CASA DE GRIEG: COZINHA – DIA
Vemos um plano mais aberto. Grieg amassa o bilhete, deixa o copo na pia.

GRIEG (V.O.)- É foda!

7 -INT. CASA DE GRIEG: BANHEIRO – DIA

Grieg está sentado na privada com uma revista. Ao seu lado há um lixinho com tampa onde estão um maço de cigarro e um isqueiro. Ele está cagando e vai fumar um cigarro. Ele gira o maço d diversas vezes e constata que está vazio.

GRIEG (V.O.)- Agora as empresas de cigarros inventaram de fazer um maço todo durinho que parece que está cheio mesmo quando está vazio; isso é pra que quando você pegue seus cigarros numa gana apoteótica de fumar o primeiro cigarro da manhã, perceba que fumou despreocupadamente na noite passada jurando por Deus que tinha ainda uns cinco caretas dentro do maço.






8-EXT. CASA DE GRIEG: QUINTAL – DIA

Grieg está fechando a porta.


GRIEG (V.O.)- Assim, você perde a noção de quanto fuma; fuma mais; e na manhã seguinte sai correndo de chinelos; bermuda rasgada e camiseta manchada de cândida para comprar mais. Desgraçados!


9-EXT. RUA CIÃO – DIA

Grieg caminha pela rua. No caminho, faremos takes fechados (câmera subjetiva) dos rostos das pessoas desaprovando Grieg.

GRIEG (V.O.)- O bar do Purtuga é na rua debaixo de casa. Porém nesse curto percurso, as pessoas que me cruzam olham com cara de pena; outras de nojo, como se a rua fosse um lugar excluso de suas vidas particulares, utilizada tão pouco e somente como via de locomoção para atingir ambientes privados, e sendo assim, necessitava do mínimo de requinte para transparecer em sua imagem, que seu destino individual é um lugar decente.








10-EXT. RUA CIÃO – DIA

Estamos mais a frente na rua. Vemos agora um plano aberto de Grieg, de forma que seja possível reparar seu desleixo.


GRIEG (V.O.)- Estou vestido mal sim! E daí? Só estou indo até o boteco comprar cigarros, preciso por um smoking?

11-EXT. Av. Utinga – DIA

Grieg chega à avenida. Ele olha os dois lados da rua, mas não atravessa. Ele fixa seu olhar à sua direita, com o rosto espantado.

GRIEG (V.O.)- Nem bem chego ao fim da artéria que corta a avenida e culmina em minha rua, me deparo com um caso antigo, de antes do meu pseudo-casamento;

12-EXT. Av. Utinga – DIA

Vemos uma mulher deslumbrante se aproximando. Ela caminha com leveza. Seus movimentos são exageradamente sexys. Acho que podemos fazer um plano mais fechado, no qual comecemos dos pés e subamos até atingir seu rosto; abrindo só então.

GRIEG (V.O.)- Lílian!

13-EXT. Av. Utinga – DIA

Os dois se aproximam, os takes vão seguindo, fechados, a descrição que Grieg faz do corpo da moça.
GRIEG (V.O.)- Olho para seu corpo tão certinho, justo ao esqueleto nas partes certas. Coxas grossas que culminam numa bunda redondinha e empinada. Cintura fina e seios fartos... Lábios entreabertos... Volumosos e úmidos.

14 -EXT. Av. Utinga – DIA

Esse é o momento em que os dois conversam. Imaginei em colocar varias cenas fechadas, de olhares maliciosos... Toques esquivos de mãos... Bocas... Respiração rápida.. e etc. Dando a entender que está rolando um clima.

GRIEG (V.O.)- Pergunto onde ela vai. Ela responde:

LILIAN (V.O em uníssono com Grieg) – Voltando do banco!

GRIEG (V.O.)- A convido a seguir caminho comigo. Ela não nega...

15 -INT. CASA DE GRIEG: SALA – DIA

Grieg e Lílian adentram a sala se agarrando ferozmente. Ele tenta fechar a porta atrás dele ao mesmo tempo em que é beijado por Lílian. É uma cena de muito tesão entre os dois.








16 -INT. CASA DE GRIEG: QUARTO – DIA

A cama não está exatamente como Grieg deixou quando acordou. Há várias revistas e bugigangas sobre ela. A cena agora será de um sexo animal. Num tapa só, ele atira as coisas que estavam sobre a cama no chão, e joga Lílian brutalmente sobre a cama. As cenas a meu ver, podem seguir a descrição em off de Grieg. Isso nos da a possibilidade de não mostrar muita coisa em take, e ainda assim deixar claro o que está acontecendo.

GRIEG (V.O.)- Sobre a cama haviam várias revistas que empurrei de lado para atirá-la no espaço que abri. Comecei a despi-la aos poucos primeiro a camisetinha vermelha; justa. Não havia sutiã com alças de silicone e bojo para lhe cobrir os peitinhos perfeitos em forma de pêra; abocanho a circunferência rosada de seus mamilos ao mesmo tempo em que lhe desabotôo a bermuda jeans. Ajoelho-me entre suas pernas e visualizo a beldade deitada, com os braços estendidos para traz; os olhos fechados e a fisionomia perdida no êxtase do momento. Abaixo-lhe a bermuda com cuidado cinematográfico de um diretor que não quer perder nenhum take. Corro as mãos modelando sua silhueta escalando seu tronco com a boca, contorno-lhe os seios como se a quisesse cheirar toda, com força suficiente para lhe atravessar caso fosse feita de barro. Inverto o percurso desta vez atingindo seu sexo, isso a faz estremecer e arquear o ventre para cima num gesto de entrega total. Ela me arranca a camisa manchada de cândida e me beija o peito, segue quase que imitando meus movimentos com leveza gravitacional e nesse momento eu mesmo me encarrego da bermuda rasgada. Ela percebe minha ação e assim retribui-me o favor.
Sinto a quentura de sua boca por um tempo e então lhe puxo rispidamente pelos cabelos trazendo-a de volta a minha perspectiva. Penetro-a devagar no inicio e em seguida lhe faço sentir. Penetro-a de frente; costas; lado; por cima; na versal; na transversal, frenético possuído. Ela grita e eu sinto seu gozo, isso me faz castigar-lhe ainda mais, e mais, e mais... Até que eu a alcanço; gozo.

Faremos aqui uma transição da seguinte forma: Iremos fechando o plano (zoom in) em alguma coisa a decidir, até o desfoque total. Para que na próxima cena, partamos do desfoque total invertendo a seqüência (zoom out)


17 -INT. CASA DE GRIEG: BANHEIRO – DIA

Podemos abrir o zoom out a partir da Torneira da pia s jorrando água. Abrimos a cena atingindo Grieg, pegando-o pelas costas, focalizando seu rosto no espelho.


GRIEG (V.O.)- Lavo o pau e as mãos, dou a descarga, e tento imaginar como estará Lilia hoje em dia. Homenagear outra mulher não é traição. Afinal de contas minha imaginação sempre excedeu meu poder de conquista.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O Violonista

Noite. Poucas estrelas ocupavam o céu e a lua estava tímida, escondendo-se por de trás das nuvens, como a mulher encabulada se veste de lençóis ao ver chegada inusitada. Sua face, via-se de viés. Sem a luz que a lua tomava emprestada do sol, a noite era um breu. Uma escuridão parecida com a da alegria pérfida de quando, sem a luz do sorriso amado, tomamos emprestado o calor alheio; deixando que a escuridão brote de dentro pra fora. E dessa forma, é sempre noite, mesmo no mais claro dos dias.
O caso não era o da traição física. Ele enamorava-se de um objeto inanimado que ocupava o canto do palco. O bar aberto deixava a noite entrar. E ela entrava sem pedir licença, soprando sua briza fria e primaveril. Num desses sopros, o objeto de desejo de Amarante foi ao chão. E o objeto era mulher, apesar de ter nome no masculino. Tinha curvas e seduzia como mulher. E tanto para Amarante, como para o objeto, a atração era incontrolável.
Os médicos o haviam proibido... Não! Na verdade... Recomendado... Pra ser mais direto, o alertaram: ‘Você não pode mais tocar violão, os danos serão irreparáveis’. E nunca a vida de Amarante o traíra de forma tão desumana.
Ao ver tal preciosidade estirada ao chão, Amarante antecipou-se ao violão. Tomou-o em suas mãos... E pôs-se a tocar. Como se um espírito o tivesse tomado. Ou como um viciado que encontra a droga... Os músicos, que aguardavam suas entradas, encontravam-se no balcão, degustando suas biritas. Não o impediram, ainda que fosse de praxe não deixar os clientes subirem ao palco, nem mesmo tocar instrumento que fosse. Mas, diante de tamanha beleza e melodia, o deixaram tocar.
As notas saltavam de sua mão esquerda. Os dedilhados dançavam corda por corda numa cadência inimaginável em sua mão direita. O bar fechou silêncio ouvindo Amarante tocar. Ninguém identificara a música, mas era a mais bela de todas as músicas. E todos sabiam, ainda que tacitamente, que aquela seria a única vez que a ouviriam em suas vidas.
Amarante estava em transe. As escalas surgiam cada vez mais intensas. Sua tez tomava um ar obcecado, quase lunático. Suas veias pulsavam quase que percusivamente. Sua cabeça começava a tremer. Seus olhos se reviravam. Sua boca abria e fechava buscando o fôlego inalcançável do ritmo. Seu mundo se acabava, quando uma mão, surgida da infinita escuridão ao seu redor... Tocou-lhe o ombro.

- Senhor Amarante! O bar já vai fechar!

Amarante levantou a cabeça que apoiava sobre os braços debruçados sobre a mesa. Olhou para o palco. E não havia palco. Olhou o garçom, que lhe fitava com ar de repreendimento e pena. Pegou seu chapéu. Virou seu ultimo gole de conhaque. Apanhou sua bengala... E mancou pela noite fria rumo a sua casa. Pelo caminho, rememorava seu tempo. Onde por sua paixão pela música, abandonou tudo. Assistiu seus antigos companheiros de banda evoluir a um futuro promissor em diversas carreiras. Manteve-se relutante. E pouco a pouco. Sua relutância, converteu-se em desespero. E o desespero. Em doença. Fazia vinte anos que ele não tocava em um violão. Assumiu mentalmente que a música era sua doença. Seu vício. Aquela que o havia levado ao fracasso. E que em curto tempo o levaria a morte. Nunca houvera sucesso. Nunca houvera talento. Devia ele, ter abandonado a música a tempo, como fizeram seus companheiros. Devia ter constituído família. Ter tido filhos. Ter formado uma vida... Mas não. Seu sonho era maior que a vida. E quando Amarante finalmente percebeu que essa vida se esvaia gota por gota em seu suor maldito. Percebeu, que de sua história, a única coisa que se podia concluir, é que quem corre atrás de sonhos, só é feliz dormindo.

A Vida Dele

Recostou a cabeça no travesseiro e concluiu que a vida é ruim. Na cama que não era cama, mas colchão somente, virava de um lado pro outro no corpo que não era seu. No mundo que não era seu. Pensava na vida perfeita que era deveras sua. Imaginava aquele quarto mofado e apertado como uma sátira da realidade. Queria nascer de novo.
Em sua vida de verdade vivia numa grande casa. Uma casa não muito longe da que agora se encontrava. Mas numa vida extremamente distante da que agora vivia.

Numa cama imensa de colchão de mola, podia ouvir o som do chuveiro de sua suíte. Era um som firme, bem diferente do pingar do chuveiro do banheiro de fora que estava usando até então. Da cama, podia assistir sua tevê de trinta e duas polegadas que pendia na parede. Nem sabia ao certo o que assistia; tantos eram os canais que dificilmente repetia um. O som vinha de dois alto falantes instalados atrás da cama, um pouco acima do grande arranjo de madeira maciça que ornamentava o móvel, além de mais dois alto falantes à frente, um pouco acima da tevê. Havia ainda uma quinta caixa, destinada somente aos graves. O som da televisão, no entanto, era suprimido em sua mente pelo do chuveiro, que nesse momento, era desligado. Ele mutou o som. Passos molhados foram então ouvidos. Um vento fraco atingiu seus pés; um vento causado pelo girar de toalha que Gabriela fez ao envolver-se na mesma. O som do secador começou. Ele continuou ouvindo o som de seu sonho realizado.

- Hoje? Azul ou Pink? – Soou a voz frágil através da porta, com a cabeça pendida para fora. Olhando com a complacência do amor e da admiração que se tem pela pessoa que transforma sua vida em algo maravilhoso. Ele não precisou responder, ela concluiu por seu olhar que preferia o azul. Voltou-se para o banheiro e vestiu-se de céu.

Ele, ao observar o caminhar de Gabriela em direção a cama, concluiu ser o homem mais feliz do mundo. A ceda cobria os seios nus de sua amada, adaptava-se por sua cintura como se fosse dela a única cintura para aquela peça. Um shortinho rendado delineava o pequeno pedaço de coxa que tapava. E ela deitou-se ao seu lado. Abraçou-lhe a cintura, recostando a cabeça em seu peito de nadador. Suspirou o ar da felicidade que se sente na plenitude da mesma; colocou sua perna sobre a dele, e apertou-se contra seu tórax.

-Acho que devíamos fazer uma loucura amanhã! – Exclamou Gabriela como quem pede licença para fazer uma travessura. Seus olhos viravam-se aos dele, para cima, e ela sabia, que desse ângulo, ele jamais lhe negaria coisa qualquer que fosse – Devíamos acordar; tomar um banho de banheira juntos; um café da manhã bem reforçado; entrar no carro só com a roupa do corpo; seguir até o shooping, comprar tudo que precisamos para a viagem e seguir pra Minas.

Não houve palavra. Tacitamente ele dera a benção aos planos de sua amada. Gabriela lhe beijou o peito nu, um pedaço de cada vez, subindo o caminho do pescoço até a boca. Colocou-se em seu colo, arqueou-se mais uma vez pra sua boca. E retribuiu-lhe a compreensão e o amor que ele lhe dava, com mais amor.

Dez da manhã ele acordara. Gabriela ao seu lado sorria dormindo. Ele levantou-se; calçou seus chinelos; enrolou-se em seu hobby vinho, de detalhes amarelos; e caminhou até a cozinha. Inspecionou por um momento os armários em busca do pó de café. Não sabia onde nada estava. Sem Matilde, a empregada, era um estranho naquele ambiente. Não sabia usar metade dos aparelhos domésticos que se dispunha sobre a imensa bancada de inox. Não conseguiria preparar o café sem a empregada. Pensou que não devia tê-la dispensado para passar o ano novo com seus parentes em Tocantins... Arrependera-se, por um instante, do bônus que dera para compra das passagens; de ônibus, logicamente. Praguejava contra os aparelhos e talheres, quando mãos macias lhe contornaram por baixo dos braços seu peito. Tão logo sentiu os seios de Gabriela apertar-se contra suas costas, sentiu-se calmo novamente.

Gabriela preparou o café enquanto ele passava cream-cheese nos croissants. Olhando-a de costas, admirou a silhueta da esposa, que se manteve exatamente igual nos últimos treze anos. Terminou rápido o trabalho com o cream-cheese, levantou-se para lhe abraçar e beijar seu pescoço. Gabriela abraçou-lhe a cabeça com uma das mãos, utilizando a outra para servir o café; virou, culminando em sua boca. E beijaram-se de lá até a banheira.

Partiram algum tempo depois, utilizando o carro de Gabriela, que assumiram ser mais pratico que o dele, uma vez que tinha amplo espaço de porta mala para colocarem as compras que fariam. Seguiram ao shooping. No caminho discutiram um pouco sobre o que ouviriam durante a viagem: optaram em comum acordo por Toquinho e Vinicius de Moraes; o CD que ele ganhara alguns dias atrás, de Gabriela, juntamente com o violão original utilizado por Toquinho naquele show, na Itália.

No shooping, separaram-se pela primeira vez naquele dia. Ela seguiu para as compras das roupas e das malas, assim como dos presentes com os quais ela presentearia seus parentes mineiros; enquanto ele, seguiu à livraria para colocar em dia sua biblioteca. Hora em vez, se telefonavam; comumente, era Gabriela convocando-o com novas sacolas para que ele as carregasse até o carro.
Algumas horas e alguns milhares de reais depois, estavam na praça de alimentação. Provendo-se de alimento para a viagem. Gabriela, enquanto comia, dissertava sobre itinerário e o hotel que havia reservado para descansarem da viagem antes de chegar à casa de seus tios. Gabriela fizera a reserva, por telefone, enquanto comprava; gabava-se de ter conseguido ter feito tudo online: tanto encontrar o melhor hotel, do qual se desviariam somente alguns quilômetros para pernoitar; quanto da reserva, que conseguira o melhor quarto numa época de ano tão difícil.

A viagem foi tranqüila. O transito na saída de São Paulo não os abatera. Enquanto Ele dirigia, Gabriela arrumava as malas e as compras no banco de trás do carro. Algumas horas depois, já estavam no hotel.
Mandaram trazer para seu quarto um Margaux. Brindaram num copo inadequado para o vinho mas não se abalaram. Jantaram no restaurante do hotel. Voltaram a seus aposentos. E dormiram um bom tempo na varanda, assistindo as estrelas que ocupavam cada centímetro do céu.

No outro dia bem cedo, partiram. Gabriela já havia ligado para sua irmã Rafaela, para contar e se gabar da loucura que fizeram. Rafaela apresentaria naquele ano o novo namorado, Jefferson, para a família. Ouvindo de rabo de ouvido, Ele sorriu quando Gabriela tirou sarro dizendo à irmã que “todo ano o ponto alto da chegada de Rafaela era a descoberta de quem era seu novo acompanhante”. Não demorou, chegaram à casa dos tios.

Calorosamente foram recebidos. Gabriela foi puxada pelas primas para que lhes mostrasse os presentes e as roupas novas. Ele, foi levado à sala, onde lhe ofereceram conhaque e um charuto cubano. Seu sogro, lhe guardava na mais alta estima, sua sogra o considerava um filho. Almoçaram fraternamente naquele dia, enquanto ele lhes explicava os perigos e benefícios do mundo literário, assim como lhes contava, por alto, qual seria a história de seu novo livro. Concordaram em unanimidade que seria um best seller.

Naquela noite, todos se vestiam de branco. O calendário marcava trinta e um de Dezembro, e o relógio onze e cinqüenta e cinco. Todos se dirigiram para o local mais alto do sítio, de onde poderiam ver de camarote os fogos de artifício na cidade. De mãos dadas, Ele e Gabriela e se entreolhavam, memorando mentalmente os anos maravilhosos que passaram juntos. Juraram, cada um em silêncio e para si mesmo, que esses anos durariam para sempre. Contaram em voz alta: cinco, quatro, três dois, um... E todos se abraçaram e desejaram felicidades. Gabriela olhou para Ele, disse com os olhos marejados de lágrimas de felicidade que “o amava mais que a própria vida”. Ele lhe sorriu abertamente, e disse que “se apaixonava por ela todos os dias de sua vida, desde a primeira vez que a viu passar frente a sua casa”. Os dois se beijaram apaixonadamente, e se abraçaram naquele momento, e por toda a vida.

O relógio batia duas da tarde quando ele abriu os olhos. Olhou para o lado e viu a escrivaninha improvisada com uma mesinha de bar que ocupava o lado de seu colchão. Levantou meio abatido, meio torto... Seguiu à cozinha, e ninguém estava na casa. A pia, repleta de formigas, ostentava um ultimo pedaço de panetone; ele o deixou as formigas. Contou setenta centavos nas moedas que constavam no pote; deixou-as ao pote. Seguiu pelo quintal de cimento batido; apoiando de vez em quando na parede descascada à sua direita, em direção ao portão. E na rua de terra, frente a sua casa, viu em seu pensamento a garota que vez em nunca passava por ali. Com seus cabelos negros, olhos castanhos escuros que davam a impressão de poder mergulhá-los, boca de lábios sempre rosados que, hora em vez, se entreabriam para recuperar o fôlego da caminhada; corpo do tipo que promete ser lindo por toda a vida. Viu a garota que ele, imaginativamente, batizou de Gabriela. A garota que lhe fazia querer ser um homem melhor.