sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O Violonista

Noite. Poucas estrelas ocupavam o céu e a lua estava tímida, escondendo-se por de trás das nuvens, como a mulher encabulada se veste de lençóis ao ver chegada inusitada. Sua face, via-se de viés. Sem a luz que a lua tomava emprestada do sol, a noite era um breu. Uma escuridão parecida com a da alegria pérfida de quando, sem a luz do sorriso amado, tomamos emprestado o calor alheio; deixando que a escuridão brote de dentro pra fora. E dessa forma, é sempre noite, mesmo no mais claro dos dias.
O caso não era o da traição física. Ele enamorava-se de um objeto inanimado que ocupava o canto do palco. O bar aberto deixava a noite entrar. E ela entrava sem pedir licença, soprando sua briza fria e primaveril. Num desses sopros, o objeto de desejo de Amarante foi ao chão. E o objeto era mulher, apesar de ter nome no masculino. Tinha curvas e seduzia como mulher. E tanto para Amarante, como para o objeto, a atração era incontrolável.
Os médicos o haviam proibido... Não! Na verdade... Recomendado... Pra ser mais direto, o alertaram: ‘Você não pode mais tocar violão, os danos serão irreparáveis’. E nunca a vida de Amarante o traíra de forma tão desumana.
Ao ver tal preciosidade estirada ao chão, Amarante antecipou-se ao violão. Tomou-o em suas mãos... E pôs-se a tocar. Como se um espírito o tivesse tomado. Ou como um viciado que encontra a droga... Os músicos, que aguardavam suas entradas, encontravam-se no balcão, degustando suas biritas. Não o impediram, ainda que fosse de praxe não deixar os clientes subirem ao palco, nem mesmo tocar instrumento que fosse. Mas, diante de tamanha beleza e melodia, o deixaram tocar.
As notas saltavam de sua mão esquerda. Os dedilhados dançavam corda por corda numa cadência inimaginável em sua mão direita. O bar fechou silêncio ouvindo Amarante tocar. Ninguém identificara a música, mas era a mais bela de todas as músicas. E todos sabiam, ainda que tacitamente, que aquela seria a única vez que a ouviriam em suas vidas.
Amarante estava em transe. As escalas surgiam cada vez mais intensas. Sua tez tomava um ar obcecado, quase lunático. Suas veias pulsavam quase que percusivamente. Sua cabeça começava a tremer. Seus olhos se reviravam. Sua boca abria e fechava buscando o fôlego inalcançável do ritmo. Seu mundo se acabava, quando uma mão, surgida da infinita escuridão ao seu redor... Tocou-lhe o ombro.

- Senhor Amarante! O bar já vai fechar!

Amarante levantou a cabeça que apoiava sobre os braços debruçados sobre a mesa. Olhou para o palco. E não havia palco. Olhou o garçom, que lhe fitava com ar de repreendimento e pena. Pegou seu chapéu. Virou seu ultimo gole de conhaque. Apanhou sua bengala... E mancou pela noite fria rumo a sua casa. Pelo caminho, rememorava seu tempo. Onde por sua paixão pela música, abandonou tudo. Assistiu seus antigos companheiros de banda evoluir a um futuro promissor em diversas carreiras. Manteve-se relutante. E pouco a pouco. Sua relutância, converteu-se em desespero. E o desespero. Em doença. Fazia vinte anos que ele não tocava em um violão. Assumiu mentalmente que a música era sua doença. Seu vício. Aquela que o havia levado ao fracasso. E que em curto tempo o levaria a morte. Nunca houvera sucesso. Nunca houvera talento. Devia ele, ter abandonado a música a tempo, como fizeram seus companheiros. Devia ter constituído família. Ter tido filhos. Ter formado uma vida... Mas não. Seu sonho era maior que a vida. E quando Amarante finalmente percebeu que essa vida se esvaia gota por gota em seu suor maldito. Percebeu, que de sua história, a única coisa que se podia concluir, é que quem corre atrás de sonhos, só é feliz dormindo.

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