domingo, 11 de janeiro de 2009

SUBHUMANO

Uma foto pendia na parede de papelão. Apesar de seu tamanho, dez por quinze, tinha peso de jóia. Maciel a fitava deslumbrado dia após dia, como se representasse uma redenção; lembranças de uma vida melhor. Uma vida passada.
A chuva castigava o barraco instalado sob a ponte. O papelão não agüentaria muito. Mas Maciel preocupava-se com a foto; a prova de que já foi humano. Suas parcas posses restringiam-se a um botijão de gás, uma panela e uma espiriteira; quase um magnata, quando comparado aos seus vizinhos; que normalmente não perduravam em tal designação. Poucos suportavam o cheiro do rio como Maciel. Oh, sim, o rio... Seu cheiro representava o que pior existia nas pessoas da superfície – como Maciel chamava os moradores da cidade que respirava sobre a ponte – , seus restos fisiológicos formavam a varanda da humilde morada de Maciel, que noites afora imaginava se as pessoas da superfície suportariam a si mesmas se soubessem a verdade que ocupava suas entranhas: eram fétidas.
A chuva que agora atacava Maciel e seu barraco vinha com a promessa de derrubá-lo. Maciel não se mexia, deitado no chão de terra que ladrilhava o interior de sua “toca”, Maciel olhava para a foto e lacrimejava. Percebeu que sua dignidade jamais seria resgatada, sua vida anterior jamais seria retomada. A superfície não o acolheria novamente jamais. Percebeu que morreria naquela noite.
Num súbito de dor e raiva, Maciel ergueu-se no interior da cabana, rasgando-lhe o teto. Como a ave que arrebenta o ovo, Maciel renascia do lixo. Mas sabia, que morreria. O rio subia cada vez mais, há tempos não acontecia do rio transbordar, e quando acontecia, noutros tempos, Maciel ainda guardava a esperança. Guardava pendurada na parede de papelão.
Maciel picou a foto. E a engoliu. Para que ninguém ao o encontrar morto sob a ponte, soubesse que ele já esteve na superfície. Engoliu a foto para que as lembranças da superfície se juntassem a única coisa que o fazia igual às pessoas que transitavam lépidas com seus telefones celulares ao ouvido, e suas importantes maletas pendentes nas suas mãos: Guardou suas memórias em suas entranhas: fétidas.

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