segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Exageros da Verdade

A faculdade fervia. Pessoas movimentavam-se, rápidas, carregando faixas e cartazes, ao passo que um militante bradava palavras de incentivo ao movimento estudantil que pouco a pouco tomava forma e formação de combate. Era semana de ciências sociais. O programa que recebi ao adentrar a instalação do prédio principal, lograva diversas atividades complementares aos estudantes, que, naquele momento ocupavam-se mais diretamente da manifestação em prol das aulas de filosofia negligenciadas pela diretoria. Mas eu não estava à vontade.
Meu incomodo, no entanto, iniciou-se no momento mesmo em que adentrei o prédio, e a visão que ocupou minha vista remeteu-me muito mais diretamente a uma feira hipe do que a uma semana estudantil propriamente dita. Bancas de roupas, de óculos, de tapioca, de foundie, de livros, de dvd´s. Tudo se mesclava incoerente ao ardor que exortava do punhado estudantil que ocupava o chão do pátio com imensas folhas de papel pardo, tinta spray e guache. Era um mercado romano montado no meio da revolução. Mas não era exatamente isso que me incomodava majoritariamente.
Ela fotografava as exposições cartográficas de Paranapiacaba enquanto eu a seguia sorrateiro; tomando o cuidado de não chamar-lhe a atenção. Queria admirá-la. Um contato direto ocupar-se-ia de desmanchar toda a magia espontânea que exalava de seu lépido caminhar. Eu a cumprimentaria com um beijo e um leve abraço. Indagaria algo irrelevante em relação às fotos que ela tirava. Perderia o fio da conversa, e me veria inclinado a partir sob a desculpa de ter algo melhor a fazer; pérfida afirmação. Não. Eu a seguia, sem que me visse. E cada flash de sua câmera, um sorriso se abria em sinal de alívio, como se fosse uma redenção estar registrando as cartas cartográficas redigidas a mão por sei lá quem. Eu a seguia. Ela me viu. E minha antevisão fundamentou-se.
Foi por isso, ou por outras coisas que me afligem em silêncio, que parti. Sai à francesa, direto ao ponto de ônibus onde, por sorte, se é que se pode chamar tamanha covardia de sorte, o ônibus já me esperava. Adentrei a condução com ares de câmara de gás, como se minha atitude fugitiva me conduzisse a um caminho sem volta. Um ponto sem retorno, como aquelas decisões mínimas que alteram para sempre a sua vida. Não liguei. Passei a roleta escolhi um banco vazio e sentei.
Não costumo ler em ônibus, no entanto, necessitava ocupar minha cabeça com algo que não remetesse a minha súbita partida, da qual no outro dia teria de explicar com homilias dispersas, na intenção de aclarar por que diabos não assisti a tão incrivelmente inspiradora palestra do prof. Dr. Fulano de tal. Ou pior ainda, porque não participei do alvoroço frente à diretoria para reivindicar nossas tão importantes aulas de filosofia. Enfiei-me num livro sobre Budapeste e tentei evitar tais pensamentos.
Digo que não costumo ler em ônibus pelo fato de ter uma atenção muito fugaz, que, qualquer estímulo exterior me faz perder. Comumente são mulheres, com seus decotes em movimento sincronizado ao balançar solavanqueiro da condução; suas saias que mais parecem ter vida própria ao redor de suas pernas bem feitas. Cabelos que mais parecem bichos ferozes, que imagino que elas soltem a noite. Olhos fugitivos.
Dessa vez, porém, uma visão de teor muito menos acalante desviou-me de minha leitura. No outro lado do ônibus, num banco paralelo ao meu, um sujeito de feição austera hora em vez sondava em minha direção sabe deus o quê. De rabo de olho pude perceber que seu olhar volta e meia visava minha direção. Gay, ponderei não ser, baseando-me de forma ridícula em sua aparência, fator tantas vezes proporcionador dos erros mais brutais oriundos da percepção humana. Mas não era gay, não. Eu acho. A mochila que ocupava seu colo parecia portar algo de inexorável valor, pois ele a abraçava como quem abraça o tesouro a pouco encontrado. Imaginava se aquela mochila não portava uma arma, com a qual o meliante furtivamente me assassinaria ao descer do ônibus. Minha leitura nesse momento, soava tão falsa quanto às explicações que daria no outro dia pela minha fuga da faculdade. Isso logicamente, se minhas previsões não calhassem de desatar a se realizar, como aconteceu no caso de minha bem amada fotógrafa. Resolvi tirar a prova. Guardei cuidadosamente o livro em minha bolsa, sondando discretamente o meliante. Preparava-me para levantar e rumar para a porta, certo de que seria seguido em meu movimento. Imaginava já se seria capaz de subjugá-lo numa luta corpo a corpo, onde com uma faca em mãos ele buscaria meu rosto, talvez meus olhos, foco de inveja pelo fato de estar lendo um livro, enquanto o pobre meliante obrigado pelos pais a trabalhar em faróis da cidade, furtou-se a escola, mantendo-se assim analfabeto. Devia estar voltando de uma entrevista de emprego no qual fora dispensado por esse mesmo motivo. Por que alguém levaria uma arma a uma entrevista de emprego? Não pensei nisso. Apenas me levantei.
Mirei a porta num giro sobre os calcanhares, quando captei um olhar do meliante. Não mirava mais a mim, mas sim, o foco de seu olhar fora o tempo todo, as pernas que eu em minha compenetrada leitura não havia reparado haver se colocado no banco atrás de mim. Eram pernas que me teriam tirado a atenção, com uma imaginação muito mais colorida que aquela na qual havia me engendrando até então. Rumei tranqüilo até a porta. Ainda havia três pontos antes do meu.
Iria ficar em pé mesmo, mas uma antiga amizade, que não havia reparado ter adentrado o ônibus, convidou-me a sua companhia. Era dona de pernas que, não fosse a calça jeans que as cobria, faria concorrência as que atrás de mim estavam. Troquei meia dúzia de palavras, e ela desceu antes de mim. Levantou-se do banco um ponto antes, no entanto, para dar passagem a uma terceira beldade. Essa, reconheci por ter sido a responsável por passar-me uma tosse das boas algumas semanas atrás. Onde, naquele mesmo ônibus, tossia incessantemente atrás de mim. Naquele momento já sabia que a moléstia me acompanharia como recordação daqueles olhos azuis que lacrimejavam pelo furor da tosse. Descemos no mesmo ponto.
Ela atravessou a rua mais rápido que eu. Até parecia saber ter me infectado, e fugia de um contato mais constrangedor. Sei que ela mora próxima de minha casa, pois sempre que encontro minha esquina, quebro-a com os olhos voltados ao seu caminhar, que tento imaginar onde vai dar. Querendo nesse momento estar próximo o bastante para retribuir-lhe a tosse. Não com a tosse propriamente em si, é claro.

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